“Há 40 anos, em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito pela Aliança Democrática presidente do Brasil. Ele recebeu 480 votos (72,73%) contra 180 votos de Paulo Maluf (27,27% dos votos) . Morreu sem tomar posse, em 21 de abril do mesmo ano. Sua eleição é o marco inicial da sólida Democracia que temos e que não está ao “alcance de mãos profanas”.
É verdade e convém recapitular os fatos.
A eleição no Colégio Eleitoral
A eleição para presidente, a primeira para um civil em 21 anos de ditadura do regime militar, foi de forma indireta, no Colégio Eleitoral, formado por Deputados federais e senadores eleitos em 1982 (ano da primeira eleição direta para governador).
Mas, no Colégio Eleitoral, do qual faziam parte senadores biônicos (indicados pelo regime militar ao Senado, sem passar pelo escrutínio popular e prefeitos das capitais), o governo tinha maioria e prefeitos das principais capitais (de maioria governista, representada no Congresso pelo PDS (Partido Democrático Social).
Derrota da emenda das Diretas Já
Vale lembrar que a eleição de Tancredo foi realizada sem votação popular, pois a emenda das Diretas Já (Emenda Dante de Oliveira) foi derrotada no Congresso Nacional, numa grande articulação da ditadura para manter a eleição no colégio eleitoral.
A votação aconteceu exatamente 40 anos atrás, em 15 de janeiro de 1985. A posse, marcada para março daquele ano não aconteceu como prevista, afinal o presidente eleito morreu, deixando o cargo para o vice, um notório apoiador do regime militar, José Sarney.
O PDS tinha ampla maioria (361 votos contra os 273 votos do PMDB, o principal partido da oposição. O PDT de Brizola tinha 30 votos, o PTB, de Ivete Vargas, tinha 14 eleitores, e o PT, criado por Lula, sindicalistas e intelectuais de esquerda, contava com 8 votos.
Pela matemática, estaria garantida a eleição do deputado federal e ex-governador de São Paulo, Paulo Salim Maluf, do PDS.
Mas Maluf tinha resistências no partido oficial. O ex-ministro do Interior, coronel Mário Andreazza, pleiteava a vaga e tinha apoio dos senadores ACM e José Sarney, presidente do PDS.
Derrota das ‘Diretas Já’ minou Maluf
Uma das estratégias dos partidos de oposição para impedir a vitória de Maluf foi a emenda para a eleição direta a presidente da República — emenda do deputado Dante de Oliveira (PMDB-MT).
Embora derrotada em 25 de abril de 1984, na Câmara dos Deputados, a campanha das Diretas sacudiu o Brasil. Ampliou as resistências contra Paulo Maluf e lançou o nome de Tancredo Neves para liderar a candidatura da oposição.
Sarney renuncia e surge o PFL
O presidente do PDS, José Sarney, defendia uma prévia para o partido escolher três candidatos. O vice-presidente Aureliano Chaves era o terceiro. O presidente da República, general João Figueiredo, não concordou.
Desgastado com o episódio, Sarney renunciou à presidência do PDS em 11 de junho de 1984 e provocou um racha no partido oficial. Na eleição dentro do PDS, Maluf venceu Andreazza por 439 a 350 votos.
Sarney, ACM, o vice Aureliano Chaves (MG), e os senadores Marco Maciel (PE) e Jorge Bornhausen (SC) se uniram para criar a chamada Frente Liberal e decidiram apoiar Tancredo. A candidatura de Tancredo foi apoiada por todos os governadores do Nordeste (menos Wilson Braga, da Paraíba) e por Antônio Carlos Magalhães e outras lideranças que foram à convenção do PDS. Em 18 de julho, em nome dos dissidentes, Aureliano Chaves formalizou o apoio do grupo a Tancredo e a indicação de José Sarney para compor a chapa como candidato a vice-presidente.
Figueiredo foge sem passar faixa
Como a história nos conta, Tancredo Neves teve de ser internado às pressas na véspera da posse, em 15 de março de 1985. Assumiu interinamente o vice José Sarney, sem receber a faixa presidencial das mãos do general Figueiredo.
Antecipando em mais de 38 anos o mesmo gesto antidemocrático de Jair Bolsonaro, que fugiu para os Estados Unidos em 30 de dezembro de 2022 (para não passar a faixa a Lula e disfarçar o golpe que tramava e resultou no 8 de janeiro de 2023), o general Figueiredo deixou o Palácio do Planalto pela porta lateral e embarcou de Brasília para o Rio pedindo “me esqueçam”.
“Tancredo Neves era um conciliador, era um homem de centro-direita, um conciliador aceito pelos militares para fazer essa transição, exatamente porque havia a compreensão de que ele não faria uma transição muito brusca, ou seja, ele não perseguiria militares que cometeram todos aqueles crimes que a gente conhece”, afirma o historiador em entrevista ao programa Bem Viver desta quarta-feira (15).
“[Foi] uma negociação das elites dos setores mais poderosos, que estava embutida a promessa de que os militares que cometeram crimes não seriam punidos. O principal deles, Carlos Alberto Ustra, homenageado pelo ex-presidente Bolsonaro na famosa sessão do impeachment da presidenta Dilma [Rousseff]”, afirma Assunção, que atua como professor na Universidade São Judas, em São Paulo (SP).
Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), o professor lembra que, de fato, o trato foi cumprido, e o Brasil viveu e ainda vive a “anistia ampla, geral e irrestrita”.
“Detalhe que a esquerda já não tinha mais quem anistiar, porque os que combateram efetivamente já tinham morrido. E a direita tinha vários, muitos deles retratados agora no filme Ainda Estou Aqui, o belíssimo filme do Walter Salles com a Fernandes Torres, que assisti três vezes e não me canso de me surpreender.”
Desafios para a democracia
Para o professor, esse fato de 40 anos atrás se relaciona com a eleição de Jair Bolsonaro (PL), em 2018, e as tentativas de golpe, que tiveram como marco o 8 de janeiro, com envolvimento de políticos e militares.
“Persiste aquela história da Lei de Segurança Nacional, aquela mentalidade do ‘nós contra eles’, dos militares como superiores aos civis, do enfrentamento ao socialismo, ao comunismo. Isso está presente até nas polícias militares, a gente pode constatar de uma maneira geral”.
“Os militares, como eles não foram punidos lá atrás, se sentem meio livres. Veja que o antigo comandante da Marinha [almirante Almir Garnier] colocou suas tropas à disposição do [ex-]presidente [Jair Bolsonaro]”, lembra o professor se referindo a articulação golpista no final de 2022 que começou a ser revelada apenas em 2024.
“A gente ainda vê, passados 40 anos, um pensamento enraizado de golpear uma autoridade civil que você não gosta por alguma razão, porque é de centro-esquerda, digamos assim, afinal, a gente não pode dizer que o PT hoje seja um partido de esquerda.”
Moacir Assunção é autor dos livros Luiz Carlos Prestes: um revolucionário brasileiro; Nem heróis, nem vilões, sobre a Guerra do Paraguai, e Os homens que mataram o facínora: a história dos grandes inimigos de Lampião, este último finalista do Prêmio jabuti de 2008.
Portanto, para o professor, esta mentalidade golpista que ele cita obriga que o país como um todo esteja constantemente mobilizado para não permitir uma volta da ditadura.
“Como não houve [a punição] e essa coisa ainda persiste, então a gente precisa ficar, a sociedade civil tem obrigação de ficar muito vigilante com essas tentativas que ainda estão na cabeça de alguns. Ainda bem que pelo menos é a minoria dos militares”, conclui.
Com informações do JB e BdF