No encerramento da Cúpula do BRICS em Kazan, o presidente da Rússia, Vladimir Putin, ressaltou o comprometimento do grupo em construir uma ordem mundial mais democrática, multipolar e harmônica. Entre os destaques das discussões, estão o foco em fortalecer as transações nas moedas nacionais e a criação de um sistema de pagamento próprio.
Nos últimos dias, a Rússia chamou a atenção de todo o mundo por conta de uma das cúpulas do BRICS mais aguardadas desde a criação do grupo, em 2009, durante o encontro em Ecaterimburgo, também no país: foi a primeira reunião de líderes e chefes de Estado desde a expansão inédita neste ano. Além de Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul, são agora integrantes Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Irã e Arábia Saudita.
Em mais uma demonstração de união do Sul Global por uma ordem mundial mais democrática e multipolar, o BRICS se mostrou combativo à guerra de sanções promovida pelo Ocidente para estrangular países em desenvolvimento com seus bloqueios. É o que avaliou à Sputnik Brasil o professor de história e pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas (Nucleas), da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João Cláudio Pitillo.
Ao comentar a coletiva dada pelo presidente Vladimir Putin ao final do evento, o especialista ressaltou o foco do grupo em fortalecer as transações nas moedas nacionais de cada país e também a criação de um sistema de pagamento próprio.
“Com esses pontos, o presidente Putin mostra que os países na esfera do BRICS tentam alcançar segurança financeira, bancária e econômica, com menos interferência externa e não pautada em especulação, o que também vai se estender para as áreas estratégicas. É a garantia de que o processo vai ser regido a nível de Estado, e não por uma política de conveniência”, resume.
Além disso, Pitillo pontua que o presidente Putin deixou claro que a intenção do grupo não é derrotar outros sistemas comerciais existentes, mas sim criar formas de interação comercial mais justas.
“Para os países mais pobres e em desenvolvimento, o dólar acaba sendo uma escravidão e uma forma de mordaça, um garrote, porque você precisa ter muitos recursos na moeda, enquanto a própria moeda desses países costuma ser extremamente desvalorizada perante o dólar […]. Sendo em dólar os juros, torna-se uma agiotagem, que nunca é paga; vira uma dívida infinita que sufoca os países mais pobres. E se você valoriza a moeda nacional nas relações comerciais entre os países do BRICS, você não só permite que esses países consigam se desenvolver de maneira mais fácil, mas você intensifica o comércio desses países numa política de ganha-ganha, gerando riqueza para ambos os lados.”
Durante a fala, Putin também sugeriu a extensão do mandato da atual presidente do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), conhecido como o banco do BRICS, Dilma Rousseff. Isso por conta do trabalho realizado pela ex-presidente do Brasil na instituição.
“Estender a gestão do Brasil à frente do NBD é excelente e uma prova de que a Dilma está sendo correta e entendeu o espírito da instituição. O interessante do banco do BRICS é que ele não é um agiota internacional, como o BIRD [Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento, ligado ao Banco Mundial], mas uma instituição de fomento e ajuda aos países na sua corrida pelo desenvolvimento autônomo”, acrescenta.
BRICS seguirá em expansão?
Outro ponto que gerou grande expectativa sobre a cúpula era o possível anúncio de países parceiros do BRICS, uma nova categoria de adesão criada em meio ao forte interesse de nações em fazer parte do grupo. Porém a lista não será divulgada neste momento.
“Esse dilema não é fácil, mas acredito que o espírito que rege o BRICS, que é de extrema cooperação e de relações justas e fraternas, vai ser capaz de criar uma lista e um grupo de países que vão, durante o processo, afinando as suas relações. Mas é importante que isso seja um critério que também abarque a questão política, não pode ser nada meramente comercial”, analisa Pitillo.
Essa também é uma questão que envolve diretamente o Brasil. Isso por conta do desejo da Venezuela em fazer parte da lista, vetada por ordem do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde as eleições no país vizinho, as relações entre Brasília e Caracas estão abaladas, por conta do não reconhecimento do governo brasileiro da vitória do presidente Nicolás Maduro. Na coletiva, Putin ressaltou que a Rússia tem uma posição diferente e expressou a esperança de que o diálogo seja retomado.
Para o professor da UERJ, a fala mostra que a Rússia pode ser uma aliada na mediação de uma retomada das conversas entre as duas nações sul-americanas, essenciais para a integração maior no continente.
“A Venezuela é um parceiro importante do Brasil, o presidente Maduro é um aliado histórico do presidente Lula. Maduro foi solidário ao presidente Lula quando ele esteve preso, foi solidário ao impeachment da presidente Dilma, foi solidário ao Brasil durante a pandemia na crise de oxigênio no estado do Amazonas […]. O Maduro tem sido um aliado muito leal do Brasil nas questões regionais, e o Brasil não tem correspondido. Há um ruído na comunicação entre Brasil e Venezuela muito grande desde a eleição e também sobre a questão de Essequibo”, argumenta.
Enquanto isso, Putin ainda reafirmou que nenhum país terá a adesão aprovada caso não haja consenso entre todos os atuais membros.
“Vários dos países que solicitaram ingresso no BRICS são nações que têm dificuldade em ter acesso a investimento entre os países capitalistas centrais, vêm de uma herança colonialista e escravocrata, de subdesenvolvimento, de desequilíbrios sociais e ambientais terríveis, e não tiveram apoio para superar isso até agora. E quando fazem aceno, é porque percebem que essa nova ordem que o BRICS pode construir é extremamente produtiva”, pontua.
BRICS mostra que Rússia não está ‘isolada’ como o Ocidente queria
Em meio à adesão cada vez maior da iniciativa de paz liderada por Brasil e China para resolver o conflito na Ucrânia, o presidente Putin também comentou a situação e lembrou que não foram as ações russas que levaram à escalada das tensões na região. Segundo o líder russo, a cúpula mostrou ainda que todos os países participantes estão comprometidos em apoiar o fim pacífico dos combates o mais rápido possível.
O especialista acredita que o sucesso do evento em Kazan mostra também ao mundo ocidental que a Rússia não está isolada e, pelo contrário, recebe apoio no Sul Global.
“A maioria dos países não concordou com a estratégia estadunidense de a OTAN [Organização do Tratado do Atlântico Norte] transformar a Rússia em um pária. Pelo contrário, as relações com a região se ampliaram, e não a partir de um movimento bélico ou de apoio à questão militar russa, mas no aspecto político”, diz.
As tensões no Oriente Médio também se mostraram outro ponto de preocupação para os países do BRICS, com a região à beira de uma guerra total provocada por Israel. Putin lembrou que os líderes defendem uma negociação com a participação de todos os agentes envolvidos no conflito, como Hamas e Hezbollah.
“Como Israel tem o apoio incondicional da União Europeia e dos Estados Unidos, sente-se à vontade para agredir seus vizinhos. E essa agressão leva a uma reação de diferentes escalas. Então o presidente Putin chama a atenção de que isso tem que ser freado e os aliados de Israel têm que ser chamados. É importante que Estados Unidos e União Europeia entrem em campo para diminuir essa escalada, que é uma escalada feroz”, finaliza.
Sputnik Brasil