Por Lily Lynch, em Noema | Tradução: Antonio Martins – OUTRASPALAVRAS
Em abril de 2018, a marinha tailandesa rebocou uma estranha caixa branca até a costa. De forma octogonal e com cerca de 7 metros de diâmetro, era feita de fibra de vidro e estava no topo de um pilar de aço de 20 metros de comprimento. Foi encontrada flutuando a cerca de 12 milhas náuticas [22 km] da costa de Phuket. Mas não era um detrito comum do mar. As autoridades tailandesas temiam que representasse uma ameaça à soberania do país.
Quando os marinheiros tailandeses subiram a bordo da caixa, seus habitantes já haviam fugido. Por cerca de três meses, a cápsula foi habitada periodicamente por um excêntrico investidor de bitcoin, um engenheiro de software americano chamado Chad Elwartowski, e sua parceira, Supranee “Nadia Summergirl” Thepdet.
As autoridades acusaram o casal de “intenção de causar dano à nação”, um crime punível com prisão perpétua ou pena de morte. Mas eles escaparam antes de serem detidos. O casal alegou que sua casa — que chamavam de seastead [algo que remete “lugar estável no mar]— estava fora das águas territoriais da Tailândia, mas o governo insistiu que sua presença “revela a intenção de desobedecer às leis da Tailândia … e poderia levar à criação de um novo Estado nas águas territoriais da Tailândia.” As autoridades tailandesas temiam que o casal na caixa branca fizesse parte de um culto e que pretendesse construir uma comunidade flutuante completa no mar.
Pouco antes de a caixa ser rebocada até a costa, Elwartowski postou uma mensagem no Facebook (agora não mais disponível) amplamente citada na mídia na época: “Eu fui livre por um momento. Provavelmente a pessoa mais livre do mundo. Foi glorioso.” Para Elwartowski, a vida no seastead era como habitar a utopia de Galt’s Gulch no livro Atlas Shrugged, de Ayn Rand.
Seasteading é uma visão utópica e libertária [no sentido de ultracapitalista] de criar comunidades flutuantes no mar além do alcance do Estado. A organização mais proeminente do movimento é o Instituto Seasteading, que visa “reimaginar a civilização com comunidades flutuantes” e foi fundada por ninguém menos que Patri Fridman, neto do economista e evangelizador do livre mercado Milton Friedman.
O jovem Friedman, um ex-programador do Google, recebeu seu financiamento inicial de Peter Thiel1, o bilionário co-fundador do PayPal e da empresa de tecnologia de espionagem Palantir, para iniciar o instituto. Como Thiel declarou na época: “A natureza do Estado está prestes a mudar de forma muito fundamental.”
Os magnatas da tecnologia do Vale do Silício miram novos horizontes para a vida humana. Além do sonho de Thiel de comunidades flutuantes no mar, Elon Musk e Jeff Bezos falam sobre colonizar o espaço. Balaji Srinivasan e Marc Andreessen clamam pela territorialização de comunidades online em chamados Estados em rede ou “sociedades startup.”
Todas essas aspirações estão enraizadas no desejo de se afastar das polities2 existentes e escapar de seus altos impostos, regulamentações e a desordem da democracia liberal. É um anseio por novas formas de autogoverno e cidadania. Em outras palavras, são projetos de saída política. E, embora os Estados em rede iluminem alguns problemas reais — a incapacidade estados-nação para responder adequadamente às crises do século 21, a desintegração da coesão social, a epidemia de solidão — eles também criam novos.
Em 2009, o economista Paul Romer propôs um conceito semelhante: a cidade-charter. Modelada em Hong Kong, ele acreditava que seria um motor de riqueza e inovação. Em uma palestra TED de 2009, ele sugeriu que a ascensão da China poderia ser atribuída à criação de “zonas econômicas especiais” como Shenzhen, onde o governo de Deng Xiaoping introduziu benefícios fiscais especiais para investidores estrangeiros na década de 1980.
Romer acreditava que novos Shenzhens e Hong Kongs podiam entrar em cena; eram um modelo capaz de ser replicado em quase qualquer lugar, criando bolsões de prosperidade através de baixos impostos e mão de obra barata, particularmente no Sul Global. Romer insistiu que isso não era uma nova forma de colonialismo. “O ruim no colonialismo … é que envolvia elementos de coerção e condescendência. Este modelo baseia-se em escolhas”, explicou em sua palestra TED. “E a escolha é o antídoto para a coerção e a condescendência.”
Nem todos estavam convencidos. Escrevendo no The Baffler em 2012, a autora Belén Fernández brincou: “É … claro que, se os chineses construíssem uma cidade-charter em metade da casa de Paul Romer e lhe dessem a escolha de viver na outra metade dela, ele provavelmente não classificaria essa incursão como um ‘antídoto para a coerção e a condescendência.’”
Nesse mesmo ano, Thiel expressou sua crença de que sair da tirania do Estado centralizado poderia ser facilitado por uma proliferação de novos países ao redor do mundo. “Se queremos aumentar a liberdade, queremos aumentar o número de países”, explicou. Como Quinn Slobodian escreveu em Crack-Up Capitalism, Thiel imaginava que isso desencorajaria os Estados de aumentarem os impostos por medo de perder capital residente para Estados concorrentes.
Havia outros supostos benefícios. “A ameaça de fuga de capital serve para escapar da chantagem dos resquícios do estado de bem-estar social na Europa Ocidental e na América do Norte”, escreveu Slobodian.
Nasce um Estado
Mas como se cria um novo país? Os caminhos tradicionais — guerra secessionista, revolução e referendo — requerem derramamento de sangue ou mobilização em massa de eleitores. Srinivasan pensa que encontrou uma maneira melhor, que detalhou em seu livro de 2022 The Network State: How to Start A New Country. [“O Estado em rede: Como lançar um novo país”].
No futuro próximo, ele escreveu, países serão criados não por pessoas de nacionalidade compartilhada, mas por indivíduos com interesses compartilhados. Os cidadãos de amanhã se descobrirão através de subculturas online, estilos de vida e paixões de nicho (“keto kosher” é uma de suas sugestões), forjando seus laços iniciais no reino digital. Os estados-nação existentes se tornaram muito polarizados, ele escreveu, e as pessoas seriam mais felizes formando comunidades “alinhadas”.
Eventualmente, membros dessas redes online alinhadas podem decidir se encontrar no meatspace, ou o mundo real. Uma vez que sua relação tenha sido suficientemente construída, eles podem adquirir território juntos, possivelmente através de crowdfunding. E depois, buscar reconhecimento oficial dos Estados-nação existentes. Finalmente, um Estado em rede deve estabelecer ou adotar criptomoeda e participar de um censo em rede no blockchain associado a esta, o que segundo os proponentes promove a confiança nos dados, pois não estes não podem ser alterados ou revertidos. Em outras palavras, administrar o Estado como uma startup, com uma fórmula simples: “nuvem primeiro, terra por último“. Do éter digital, nasce um Estado.
Na imaginação de Srinivasan, a rede reconceitua a condição de Estado. Estados em rede seriam descentralizados e sem fronteiras, permitindo que os cidadãos se movimentem facilmente entre “nós”, em vários locais ao redor do mundo. Seria mais como um “arquipélago em rede” — não “fisicamente centralizado como um Estado-nação, nem limitado em escala como uma cidade-estado. É geograficamente descentralizado e conectado pela internet.”
A filosofia básica subjacente aqui não é totalmente nova. No livro de 1997 The Sovereign Individual [“O Indivíduo Soberano”] os autores conservadores Lord William Rees-Mogg e James Dale Davidson argumentaram que o século 21 decretaria a morte do Estado-nação. Também previram que a maior parte do trabalho realizado pela chamada “elite cognitiva” seria conduzido online. Esse desenvolvimento tornaria o indivíduo — em vez do Estado — soberano.
“Qualquer pessoa com um computador portátil e um link de satélite poderá conduzir quase qualquer negócio em qualquer lugar”, escreveram. “Você não será mais obrigado a viver em uma jurisdição de altos impostos para ganhar alta renda … o Estado-nação como o conhecemos não perdurará em nada como sua forma atual.” Talvez o conhecimento dessa ameaça seja um fator limitador no crescimento do trabalho remoto.
Baleias Insulares
A 64 quilômetros do Caribe, em Honduras, há uma fatia de 75 km de paraíso tropical. A ilha de Roatán foi uma parada frequente para os colonialistas europeus que exploraram a América Central e, mais tarde, um refúgio para piratas. Hoje, hospeda o Estado em rede mais firmemente estabelecido no mundo corpóreo, uma comunidade em crescimento apoiada por Thiel chamada Próspera. Há vilas privadas, um campo de golfe de 18 buracos, um complexo de apartamentos residenciais, restaurantes e um Centro de Educação Bitcoin, onde os clientes podem aprender a comprar e vender criptomoeda que podem usar para comprar comida e bebidas em seu café. Há até um serviço de entrega por drones e uma clínica de biotecnologia experimental.
Mas nem tudo está bem no paraíso. Os secessionistas do Vale do Silício estão atualmente envolvidos em uma batalha legal feroz contra o governo do Estado anfitrião. Próspera está processando o governo hondurenho em US$ 11 bilhões.
As origens da batalha legal, e da própria Próspera, remontam a 2009, quando o governo de esquerda de Manuel Zelaya foi derrubado em um golpe apoiado pelos Estados Unidos. Ele foi substituído por Porfirio Lobo, cuja ascensão ao poder foi possibilitada não apenas por Washington, mas por somas exorbitantes de dinheiro de narcotraficantes. Como Slobodian escreveu, o novo governo de Lobo era composto por jovens economistas sofisticados, formados em universidades de elite dos EUA; eram favoráveis a truques que prometiam inovação e soluções rápidas. Isso os tornou o parceiro ideológico perfeito para Romer, que eles contataram após assistir a uma de suas palestras sobre cidades-charter online.
No final de 2010, o governo de Honduras havia se comprometido a fazer do país “o lugar de um experimento econômico”. Esse experimento resultaria na criação da ZEDE, ou Zona de Emprego e Desenvolvimento Econômico, uma subdivisão administrativa em Honduras. As ZEDEs foram descritas por críticos como “santuários para exploração” e refúgios para crime e corrupção. Elas são autorizadas a manter ter suas próprias agências de segurança interna, prisões e serviços de inteligência, assim como seus próprios sistemas político, judicial e educacional. No entanto, a lei hondurenha ainda se aplica.
Em 2021, os representantes das Nações Unidas em Honduras expressaram preocupação de que as ZEDEs pudessem representar uma ameaça aos direitos humanos dos povos afro-indígenas. Seus territórios poderiam ser expropriados para criar ou expandir as ZEDEs, se eles não tivessem um título de território oficial. O sociólogo hondurenho Pablo Carías disse que as ZEDEs lembram as concessões de terras feitas em favor de empresas como a United Fruit Company para suas plantações exploradoras de bananas um século atrás — uma história que deu origem ao termo pejorativo “república das bananas.”
As ZEDEs também excluem impostos de importação e exportação e têm regulamentos favoráveis às empresas. Lobo deixou o cargo em 2014, e seu substituto, Juan Orlando Hernández, que este ano foi condenado por conspiração com tráfico de drogas e sentenciado a pelo menos 40 anos de prisão, tornou-se um promotor entusiasta do modelo de cidade-charter.
As ZEDEs enfureceram muitos hondurenhos, que se opuseram a ceder seu território para chamados cripto-colonialistas ou colonialistas blockchain. O acadêmico Olivier Jutel usou o termo “colonialismo blockchain” para descrever um processo que “avança com uma face humanitária, aproveitando o desejo por desenvolvimento tecnológico e uma fraqueza regulatória entre os governos do mundo em desenvolvimento.”
A reação galvanizou um movimento nacional. Mas o governo havia previsto controvérsias futuras e foi inteligente o suficiente para incorporar a estrutura legal das ZEDEs em acordos internacionalmente vinculativos. Futuros governos hondurenhos enfrentariam ações legais se tentassem aboli-las.
E é exatamente isso que aconteceu.
Em 2021, a líder de esquerda Xiomara Castro foi eleita presidente. Uma vez no cargo, cumpriu sua promessa de campanha de revogar a lei das ZEDEs que permitiu a fundação de Próspera. No entanto, o processo de revogação foi complicado. Pouco depois de o Congresso aprovar parcialmente a revogação, em 2022, Próspera recorreu ao Centro Internacional para Resolução de Disputas de Investimentos (ICSID) do Banco Mundial para tentar forçar Xiomara a cumprir as políticas da era Hernández. O ICSID recebeu críticas vastas dos governos de países em desenvolvimento por suposto viés corporativo, como privilegiar empresas estrangeiras em detrimento dos Estados.
Próspera está processando Honduras em quase US$ 11 bilhões, ou aproximadamente um terço do PIB do país. Mas Xiomara não se intimidou. No início deste ano, Honduras anunciou que estaria se retirando do ICSID.
Abundância & Vitalidade
Um dos investidores de Próspera é a Pronomos Capital, uma empresa de capital de risco baseada em São Francisco com uma missão autodescrita de “construir cidades prósperas, que cresçam para capacitar nações inteiras.” A Pronomos arrecadou mais de US$ 13 milhões de gigantes do Vale do Silício, incluindo Thiel, Srinivasan e Andreessen. O fundador da Pronomos Capital? Ninguém menos que Patri Friedman do Instituto Seasteading.
Um dos inúmeros outros projetos da Pronomos é a Praxis, uma metrópole planejada em um país mediterrâneo ainda não nomeado que se apresenta como “a primeira nação nativa da internet.” Embora ainda esteja em sua fase pré-territorial, já contava com quase 2.200 cidadãos em todo o mundo em maio de 2024. A Praxis é “organizada em torno do valor da vitalidade,” e um vídeo recente publicado na conta X da cidade startup dá alguma indicação do que isso significa.
O vídeo adapta seu título, Every angel is terrifying, [“Todo anjo é terrível”] da estrofe de abertura do ciclo Elegias de Duíno do poeta austríaco Rainer Maria Rilke. Um narrador cita Nietzsche e oferece um relato amarga da vida moderna, onde as pessoas se contentaram e se saciaram, sobremedicadas com drogas psiquiátricas, e tanto a história quanto as notícias são falsas. Pior ainda, o narrador diz: “a mídia contemporânea proclama que ter quaisquer ideais é fascista. Tudo ligado a convicção é fascista.”
Mas a Praxis oferece uma prescrição: um reabraço de valores, convicção, beleza, hierarquia natural e grandeza. “Os grandes abrem caminho através das teias de aranha da mediocridade,” diz o narrador. “Esses são os homens e mulheres que constroem novos mundos.”
Outro projeto no portfólio da Pronomos é a Afropolitan, que visa unir a diáspora africana sob o lema “reivindicar nossa abundância.” O manifesto da Afropolitan cita o ícone anticolonial Frantz Fanon, o porta-voz do grupo revolucionário Frente de Libertação Nacional na Argélia — “Cada geração deve, a partir da relativa obscuridade, descobrir sua missão, cumpri-la ou traí-la.”
O site da Pronomos está cheio de referências e palavras-chave que parecem retiradas do mundo das ONGs e do desenvolvimento inclusivo — “governança centrada no ser humano,” “habitação acessível,” “espaços comunitários,” “impacto social.”
Mas, bem além da retórica aparentemente progressista, existe o que a pesquisadora Isabelle Simpson chamou de “cryptotrad”. O termo usa “crypto” de duas maneiras, referindo-se tanto a criptomoeda quanto a “oculto” ou “secreto”. “Trad” é uma abreviação de tradicional, então “cryptotrad” descreve um conservadorismo especial do Vale do Silício: enquanto podem parecer “inovadores, disruptivos e voltados para o futuro”, observou Isabelle, eles na verdade buscam “reafirmar e preservar os valores ocidentais ‘tradicionais’ e conservadores.”
Os evangelizadores do Estado de rede usam a linguagem do progresso, fronteiras abertas e pós-nacionalismo. Mas o fazem a serviço da construção de novas sociedades onde as morais “trad” são protegidas das falhas percebidas dos Estados-nação modernos. Embora não sejam um projeto racial, os Estados de rede representam algo semelhante a uma forma de “fuga branca” do século 21 de “— a migração em massa de brancos da classe média de áreas urbanas deterioradas para uma nova forma de vida nos subúrbios.
California Forever
Os defensores dos Estados de rede e das utopias cripto geralmente concentram-se na fundação de novos Estados, mas às vezes oferecem “soluções” para as comunidades que deixariam para trás. São Francisco, frequentemente invocada por secessionistas da tecnologia como o epítome da má gestão liberal, recebe muita atenção.
No ano passado, Srinivasan deu uma entrevista em podcast na qual detalhou como sua própria tribo de elite “cinza” — distinta do “azul” dos liberais e do “vermelho” dos conservadores — poderia retomar São Francisco, bairro por bairro. Assim como no Estado de rede, esta tribo “cinza” forjará sua identidade tribal na nuvem antes de comprar imóveis. Srinivasan enfatizou que os “cinzas” devem formar alianças com a polícia “vermelha”, que, por sua vez, atuará em seu nome para proteger os bairros “cinza” da anarquia provocada pelos “azuis” em relação ao desamparo, abuso de drogas e crime.
Durante uma palestra na conferência sobre Estado de rede de Srinivasan em Amsterdã no ano passado, o executivo-chefe da Y Combinator, Gary Tan, que está liderando a tentativa de moderar a política liberal da cidade, enfatizou a necessidade de criar uma rede de mídia paralela online antes de tomar o poder no mundo real, citando a aquisição do Twitter por Elon Musk em 2022 como uma vitória para sua tribo. Em outras palavras, a lógica do estado de rede pode ser usada para criar novos estados, mas também pode ser aplicada à tomada de estados existentes.
O mesmo grupo também direcionou seus olhares para outras partes da Bay Area [a região em torno de São Francisco]. No ano passado, o New York Times revelou que um grupo de magnatas do Vale do Silício estava por trás de uma empresa chamada Flannery Associates, que havia comprado terras para construir uma cidade para cerca de 400 mil novos residentes no Condado de Solano. Os investidores, incluindo luminares como o co-fundador do LinkedIn Reid Hoffman, Marc Andreessen e a viúva de Steve Jobs, Laurene Powell Jobs, haviam adquirido 25 mil hectares, ou uma área aproximadamente do tamanho de Recife.
O nome do projeto, assim como o da corporação de desenvolvimento imobiliário por trás dele, é “California Forever”, embora de acordo com o CEO Jan Sramek, este seja apenas um nome provisório. Muitos relatórios criticaram o projeto como uma “utopia tecnológica” para bilionários, uma caracterização que Sramek rejeita. Ele diz querer construir “uma cidade de ontem”, livre das patologias que assolam a Califórnia contemporânea.
Srinivasan considera o desenvolvimento do Condado de Solano como parte de sua ideia de Estado de rede. Ele aludiu a isso em uma entrevista de podcast no ano passado. “Prefiro chamar de algo como o Sionismo Tecnológico”, disse ele. “E há diferentes versões, que são ‘reforma no lugar’ e ‘emigrar’. E o Estado de rede — o livro — diz respeito à versão de terra nua disso, que já está sendo tentada. Você está vendo esse projeto no Norte da Califórnia. Você o está vendo com Creator Cabins e Próspera e Culdesac e Praxis. Há cerca de 50 desses projetos agora ao redor do mundo.”
Mas o caminho para uma utopia tecnológica na Califórnia precisa superar muitos obstáculos e barricadas. Primeiro, o California Forever requer o consentimento dos eleitores antes que possa ser construído. Uma norma de crescimento ordenado promulgada em 1980 proíbe o desenvolvimento de expansão em terras agrícolas em Solano. O California Forever está buscando modificar a designação do uso da terra por meio de um plebiscito paralelo às eleições de novembro de 2024. No final de abril, o projeto apresentou as assinaturas necessárias para levar a proposta às urnas.
Ao mesmo tempo, surgiram inúmeras preocupações sobre o próprio projeto. Há gente alarmada com a possível pressão sobre o já escasso suprimento de água do condado e a destruição do habitat de várias espécies ameaçadas. A Base da Força Aérea de Travis, nas proximidades, também se opôs, alegando que a iniciativa poderia interferir em suas operações de voo. Em resposta, no início deste ano, o California Forever apresentou uma proposta alterada que supostamente resolve essas preocupações.
Outros ainda condenaram as táticas agressivas do California Forever. Em maio passado, a Flannery Associates entrou com um processo federal contra dezenas de entidades, incluindo agricultores e fazendeiros individuais, alguns dos quais se recusaram a vender suas terras para o projeto. A empresa acusou-os de violar as leis antitruste ao tentar “conspirar, coludir, fixar preços e cobrar ilegalmente a Flannery” e formar “uma conspiração secreta para aumentar os preços.” A Flannery busca indenizações no valor de US$ 510 milhões. No início da primavera, alguns proprietários de terras começaram a resolver as reivindicações.
Liberdade & Solidão
No mesmo “arquipélago” do Estado de rede existem outros empreendimentos mais modestos. Entre eles está a “cidade pop-up”, que é exatamente o que parece: cidades que existem por algumas semanas ou meses de cada vez. Vitalik Buterin, fundador da plataforma de criptomoeda Ethereum, estabeleceu talvez a mais conhecida dessas: Zuzalu, que tornou-se real pela primeira vez na costa de Montenegro por dois meses na primavera de 2023.
De acordo com Buterin, esse tempo é ideal e resolve alguns dos problemas causados pelo aumento do trabalho remoto pós-pandemia. Antigos moradores de escritório lamentaram que não há substituto para interações reais no local de trabalho, nem encontros casuais e espontâneos que possam resultar em avanços inovadores. Este ano, Zuzalu sediará uma vila pop-up de dois meses para até 500 “buscadores da verdade, construtores e indivíduos soberanos” na Geórgia.
As cidades pop-up também visam atrair nômades digitais. Em um artigo para a Palladium Magazine intitulado “Por que eu construí Zuzalu”, Buterin escreveu que cerca de um terço dos participantes da Zuzalu do ano passado faziam parte dos aproximadamente 17 milhões de trabalhadores norte-americanos agora identificados como nômades digitais. De acordo com a ONU, dezenas de locais turísticos importantes já ofereciam vistos para nômades digitais em novembro de 2023.
Mas a vida de nômade desimpedido, sonhada por libertários e filósofos do Vale do Silício, exacerbou outro problema: a solidão. Como escreveu o autor Oliver Burkeman:
“‘Nômade digital’ é um termo inadequado — e instrutivo. Nômades tradicionais não são vagabundos solitários sem laptops; são pessoas intensamente focadas em grupos e que, por sinal, têm menos liberdade pessoal do que membros de tribos estabelecidas, uma vez que sua sobrevivência depende de trabalharem juntas. … Em seus momentos mais sinceros, os nômades digitais admitem que o principal problema com seu estilo de vida é a solidão aguda.”
Burkeman explicou que a liberdade ilimitada para trabalhar de um laptop em uma praia tailandesa ou em um bar em Medellín tem um custo elevado. Ele relatou a história de um nômade que desabou em lágrimas ao ver uma família andar de bicicleta junta, em uma pequena cidade no Japão: seu estilo de vida sem amarras havia colocado as alegrias simples fora de seu alcance. “Cada ganho em liberdade temporal pessoal acarreta uma perda correspondente em coordenar seu tempo com o tempo de outras pessoas,” escreveu. “O estilo de vida do nômade digital carece dos ritmos compartilhados necessários para que relacionamentos profundos se firmem.”
Os Estados de rede e as cidades pop-up estão tentando abordar esse problema da solidão. Próspera está se unindo a uma empresa baseada na Carolina do Norte, Nomad Nation, para construir uma “vila” de moradia e trabalho compartilhado para trabalhadores remotos. De acordo com o site da Nomad Nation, a empresa “vive na intersecção entre imóveis, tecnologia e comunidade.” O projeto Próspera da empresa oferecerá aos nômades digitais um mundo social transitório para viver por um mês ou dois, em vez de um Airbnb.
Nunca Morra
Os secessionistas tecnológicos veem outras oportunidades no Estado de rede. Eles estão interessados no potencial de realizar pesquisas médicas experimentais além do alcance da FDA (Agências de Alimentos e Medicamentos dos EUA), que regula produtos médicos, medicamentos, alimentos e cosméticos. A Próspera já abriga uma clínica para uma startup chamada Minicircle, que se concentra em terapias genéticas experimentais. Além disso, a cidade pop-up de Vitalia, organizada pela primeira vez em Próspera este ano, agora é um distrito permanente, focado exclusivamente em longevidade.
A Vitalia tem sido descrita por seus organizadores como um emergente “hub experimental de biotecnologia, zona econômica especial ampliada por cripto e reator nuclear de governança liberal, grandes cérebros e ideias disruptivas.” De acordo com o site da Vitalia, o hub de Roatan “abriga mais de 500 cientistas, engenheiros de biotecnologia e empreendedores que amam a vida e não querem que ela acabe.”
Desvinculada das regulamentações da FDA, a Vitalia está livre de restrições a pesquisas aceleradas, como o alto custo dos ensaios clínicos, porque a Próspera tem sua própria arquitetura legal e é uma zona econômica livre. A Vitalia pode oferecer terapias logo após uma fase inicial de pesquisa, que apenas estabelece a segurança, em vez de passar pela segunda fase, que estabelece a eficácia. O relaxamento de tais regulamentações levou alguns a se preocuparem com a fato de a Vitalia poder produzir terapias de “cura milagrosa” de benefício questionável.
Bryan Johnson, o milionário da tecnologia que gasta US$ 2 milhões por ano em um regime de saúde para reverter o processo de envelhecimento, apareceu em Vitalia na primavera deste ano. Vestindo uma camiseta com o slogan “nunca morra”, Johnson disse a uma plateia que a humanidade estava à beira de um “choque exógeno” e que não se deve “subestimar o quão rápido as coisas podem mudar.”
Esse anseio por uma velocidade vertiginosa na inovação recorda a ideia de Thiel de que fora do “cone estreito de progresso ao redor do mundo dos bits”, o progresso científico estagnou por meio século. Thiel culpou o que chama de “establishment centro-esquerdista zumbi” por isso, sugerindo que este teme o avanço científico, especialmente de tecnologias que têm aplicações civis e militares.
Criptocolonialistas
Em abril de 2023, o então-presidente de Montenegro, Milo Ðjukanović, perdeu uma eleição após décadas no poder, o que deu início a uma nova etapa no pequeno Estado balcânico. Um partido centrista, o Movimento Europa Agora, assumiu a presidência e acolheu os entusiastas da cripto. Seu líder, Milojko Spajić, compareceu ao Zuzalu. Vinha pressionando o país a entrar no negócio de criptomoedas desde que atuou como ministro das Finanças em 2021. Na véspera de sua vitória, Spajić chegou a convencer o ex-primeiro-ministro Zdravko Krivokapić a conceder cidadania montenegrina ao fundador do Ethereum, Vitalik Buterin.
Mas a liderança jovem de Montenegro viria a se arrepender de abrir seus braços para a comunidade cripto com tal açodamento. “Seria melhor encontrar os combatentes do Estado Islâmico — com eles, pelo menos você sabe com o que está lidando. Mas você não tem ideia do que essas pessoas estão fazendo com as criptomoedas,” disse Milan Knežević, o presidente do Comitê de Segurança e Defesa do parlamento montenegrino, aos repórteres no ano passado. O problema não era exatamente o Zuzalu, mas o chamado rei da criptomoeda, Do Kwon.
O ex-magnata foi preso em Montenegro por fraude de passaporte no aeroporto de Podgorica em março de 2023. Do Kwon foi considerado culpado por fraude civil nos EUA e enfrenta acusações na Coreia do Sul pelo sumiço de US$ 40 bilhões das criptomoedas Luna e TerraUSD, o chamado “stablecoin” criado por sua Terraform Labs. Enquanto estava em uma prisão montenegrina em junho de 2023, Do Kwon teria escrito uma carta para os principais funcionários do país, incluindo o primeiro-ministro interino Dritan Abazović, do partido verde-liberal Ação Unida pela Reforma, descrevendo seu “relacionamento financeiro e comercial” com Spajić, o homem então prestes a se tornar o próximo primeiro-ministro.
A mídia afirmou que Spajić havia se encontrado com Do Kwon na capital sérvia, Belgrado. Antes das eleições parlamentares de 2023, Abazović tentou retratar Spajić e o Europa Agora como envolvidos em negócios obscuros com Do Kwon. Spajić negou essas alegações, mas seus rivais políticos insistiram. Como Abazović disse a uma publicação, “não podemos nos tornar um terreno fértil para fraudadores globais, mesmo que eles usem blockchain.” Esses esforços não alcançaram o resultado desejado. O Europa Agora venceu a eleição e Spajić tornou-se primeiro-ministro.
Coorde-nações
Há quem acredite que a ideia do Estado de rede tem aspectos que vale a pena preservar, como a necessidade de atualizar a governança dos Estados-nação, para abordar problemas prementes do século 21, como as mudanças climáticas. Entre estes, estão Josh Davila, apresentador e criador do podcast “The Blockchain Socialist”, e a jurista e ativista da internet Primavera De Filippi. Os dois, junto com alguns seguidores, deram o nome de “rede de coorde-nações” a sua alternativa ao secessionismo tecnológico do Estado. Definem-na como uma “rede interligada voluntária de comunidades com valores alinhados e uma identidade compartilhada. Eles compartilham recursos para distribuí-los dentro da rede e engajar em ação coletiva, por meio de governança participativa e interdependência entre os nós.”
A ideia por trás das coorde-nações é buscar coexistir com os Estados-nação existentes, em vez de substituí-los. Em outras palavras, são comunidades ou “nações” dentro dos Estados e não secessionistas. Os defensores das coorde-nações enxergam a nação como um conceito muito mais expansivo do que o tradicional, baseado em aspectos como solo, religião e língua. As coorde-nações utilizam blockchain para criar “uma camada extra de soberania” para seus membros como um coletivo: uma infraestrutura de blockchain garante à coorde-nação mais independência do que se dependesse de um servidor sujeito à jurisdição de um Estado-nação específico.
O Estado & Eu
Por enquanto, parece que o vasto arquipélago de sociedades iniciantes imaginado por Srinivasan e seu grupo de bilionários e tecnocratas certamente permanecerá como ficção. Mas já, como escreveu Slobodian, há mais de 5.400 zonas ao redor do mundo que têm suas próprias regras econômicas e judiciais, entre elas “estados-cidades, refúgios, enclaves, portos livres, parques de alta tecnologia, distritos isentos de impostos e centros de inovação.”
Enquanto isso, o Reino Unido, a Austrália e a Itália têm utilizado ou proposto algo oposto aos refúgios utópicos dos tecnocratas: centros migratórios offshore, em ilhas ou em terceiros países, que permitiram aos governos destes países driblar obrigações legais e humanitárias estabelecidas por normas internacionais ou da União Europeia.
Em junho passado, o único refugiado ainda mantido em um “centro de processamento” migratório offshore na ilha de Nauru foi finalmente levado para a Austrália. Ao longo da década anterior, o governo australiano havia transferido à força mais de 3.000 migrantes e refugiados — principalmente afegãos, iranianos, iraquianos, paquistaneses e cingaleses. Eles foram levados a “centros de processamento” em Papua Nova Guiné e Nauru, como parte de uma operação militar de segurança de fronteiras. Foram mantidos em condições miseráveis e sujeitos a “abusos graves, tratamento desumano e negligência médica,” de acordo com a Human Rights Watch. A Austrália alegou que não tinha jurisdição para ajudar. Mas muitos discordaram – entre eles, agências de consultoria em direitos humanos da ONU como a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, discordaram.
Esses centros de processamento offshore visam desencorajar futuros migrantes de fazerem a mesma jornada. Como escreveu o criminologista Jamal Barnes, “a Austrália adotou estratégias legais e argumentos humanitários para não apenas negar a ocorrência de (e responsabilidade por) tortura e CIDT [tratamento cruel, desumano ou degradante], mas também negou qualquer erro ao argumentar que os sofrimentos ocorridos na detenção offshore são necessários para desencorajar futuras chegadas de barco e salvar vidas no mar.”
Talvez não seja surpreendente que Nauru, a menor nação insular do mundo, também tenha sido visada por bilionários cripto. O ex-fundador da FTX, Sam Bankman-Fried, que foi condenado a 25 anos de prisão por fraudar clientes e investidores de sua empresa teria planejado comprar a ilha. Seus planos para Nauru incluíam desenvolver “regulamentação sensata em torno do aprimoramento genético humano” e criar um laboratório para pesquisa genética.
Para os mais ricos, um microestado insular, uma barcaça flutuante ou um país em desenvolvimento com problemas financeiros pode representar uma fantasia de liberdade ilimitada, experimentação sem restrições e realização de um eu soberano. Para os mais pobres ou desesperados do mundo, no entanto, tais locais sem lei são frequentemente a antítese da liberdade. Bilionários do Vale do Silício podem ver o Estado como um aparato de repressão, mas a experiência dos migrantes demonstra que alguns dos piores abusos florescem na ausência do Estado. O sonho do indivíduo soberano nunca foi feito para todos. Foi sempre destinado apenas àqueles que já tinham liberdade de movimento por meio de seus passaportes ou os ricos o suficiente para comprar o sonho para si mesmos.
Notas:
1Peter Thiel também foi um grande investidor no Facebook e é apoiador de Donald Trump e responsável pela indicação de seu vice, J.D. Vance
2Polity (inglês). Qualquer grupo com identidade coletiva, organizado a partir de instituições. Os Estados são o exemplo clássico