Para as corporações, a regra já não é produzir, mas capturar. Brilhar na mídia, excitar investidores e vender ações sobrepõe-se a realizar. O CEO tornou-se um marqueteiro – pago a peso de ouro e incensado como herói em biografias
Por Michael Eby, no El Salto – OUTRASPALAVRAS
Tradução: Glauco Faria – Arte: Barry Blitt/The New Yorker –
Uma das muitas contradições presentes no campo ideológico das Big Techs é a que opõe a fé na descentralização e a sedução dessas corporações pela “liderança” empresarial. Identificar as empresas pelos apelidos dos seus executivos-chefes, ou CEOs – Altman, no caso da OpenAI; Zuckerberg, no da Meta; Ellison, no da Oracle – tornou-se jargão. Na imprensa especializada prevalece a sensação de que esses nomes servem mais como sinônimos do que como metonímias, como se o indivíduo que dirige a corporação fosse também o eixo sobre o qual gira seu sucesso ou fracasso. As aquisições malsucedidas, as violações de segurança e os problemas de monetização do Yahoo ao longo da década de 2010 tornaram-se indelevelmente associados à sua CEO, Marissa Mayer. O retorno triunfante da Apple, praticamente falida no final da década de 1990, foi atribuído ao lendário golpe dado por Steve Jobs em seu conselho de administração.
Os CEO nem sempre ocuparam um lugar tão privilegiado na cultura empresarial global. Na opinião de Rakesh Khurana, professor da Harvard Business School, os líderes empresariais já foram tão anônimos para o público “como o eram suas secretárias, motoristas e engraxates”. No seu trabalho de 2002, Searching for a Corporate Saviour: The Irrational Quest for Charismatic CEOs [“Procurando um Salvador Corporativo: a busca irracional por CEOs carismáticos”, em tradução preliminar], Khurana descreve a mudança do papel prático e simbólico destas figuras desde o final do século XIX. Os primeiros titãs da indústria – os Carnegies e os Rockefellers, os Henry Fords e Charles Eastmans, e outros grandes líderes empresariais – adquiriram notoriedade pública pela sua construção de impérios, inovações técnicas e de gestão, esforços filantrópicos e seu ativismo antioperário. Eles personificavam um tipo distintamente burguês de autoridade carismática weberiana, sob a qual a acumulação de riquezas era vista como uma recompensa divinamente ordenada pela sua excepcional ética de trabalho. Em meados do século XX, contudo, esta imagem foi transformada à medida que o desenvolvimento de rotinas, procedimentos, leis e normas corporativas conduziu a uma forma reconhecidamente moderna de autoridade legal ou racional.
Naquele momento, o magnata reencarnou como um administrador competente. Embora Khurana atribua isto à ascensão de tiranos como Hitler e Mussolini, que explodiram o “mito do self-made man”, uma explicação mais completa poderia estabelecer uma ligação entre o CEO de meados do século XX e os princípios formais de gestão do taylorismo. O apelo à racionalidade e à eficiência despersonalizou a subjugação do trabalho pelo capital. A exploração já não podia ser personificada pelo barão da empresa, uma vez que as condições existentes no local de trabalho eram o resultado de um sistema de análise, cálculo e planejamento eticamente neutro e semelhante à norma legal. Embora os trabalhadores organizados continuassem a rebelar-se contra o “chefe-espantalho” da fábrica fordista, durante a década de 1950 a escala crescente das operações empresariais, bem como a substituição dos empresários e dos seus herdeiros pelos acionistas e, posteriormente, pelos conselhos de administração e equipes de gestão, ajudou a inaugurar um período no qual o CEO delegou grande parte das operações diárias visíveis da empresa.
Na década de 1980, as condições estavam propícias para que outra transformação ocorresse. Os efeitos do desempenho de cinco anos de alta da bolsa de Nova York, seguidos por uma série muito mais longa de aumento dos preços das ações na década seguinte, refletiram-se na sorte dos fundos mútuos. Depois que o Congresso dos EUA aprovou a Lei da Receita de 1978, que legalizou e popularizou os planos de aposentadoria privados, cuja contribuição beneficia-se de generosas isenções fiscais – os famosos planos 401(k) – o dinheiro fluiu para eles, o que significou que o capital de investidores não profissionais ou “comuns” começou a ser canalizado para uma gama diversificada de ações de inúmeras empresas. Adivieram duas consequências importantes: uma ampla demanda por estas ações e um envolvimento emocional generalizado com o desempenho geral da bolsa. A mídia dos EUA continua a dedicar uma quantidade esmagadora de tempo à evolução dos preços das ações; Donald Trump frequentemente parece vincular o sucesso de sua presidência ao desempenho do S&P 500 [um dos índices de Wall Street], enquanto os fundos que acompanham o desempenho desse índice cresceram em popularidade nas últimas décadas entre a comunidade internacional de investimentos.
Isso permitiu a rápida expansão da imprensa de negócios, com a fundação de veículos como CNBC, MSNBC e Bloomberg News durante as décadas de 1980 e 1990 e a proliferação de inúmeras publicações financeiras especializadas, bem como o surgimento do cobiçado novo título de “analista de ações”. O jornalismo econômico concentrava-se no desempenho de curto prazo das empresas, para as quais o preço das ações era um barômetro claro e prontamente disponível. É claro que, como ressalta Khurana, essa cobertura sempre foi “tingida com o viés individualista da cultura americana”, concentrando-se em personalidades individuais em vez de estratégias complexas. O principal deles era o CEO, a personificação mais visível do destino de uma empresa.
Ao mesmo tempo, os deveres do CEO começaram a mudar para aparições na mídia, reuniões de acionistas, conferências do setor, apresentações de lucros, briefings individuais e outras responsabilidades, que passaram a ser chamadas de “relações com investidores”. O líder empresarial ideal era aquele que chamava a atenção e inspirava a confiança de um número muito maior de partes envolvidas ou conectadas de uma forma ou de outra com a empresa. Aqueles que conseguiam cumprir essas tarefas eram remunerados com uma renda estratosférica por seu trabalho executivo. Khurana descreve o surgimento dos “CEOs terceirizados” e o processo pelo qual a busca por um novo CEO deixou de ser uma formalidade sem graça, ou seja, simplesmente a constatação da promoção iminente de um funcionário antigo que havia subido na escada corporativa, para se tornar um espetáculo de mídia transmitido com grande alarde.
Esse período também viu o renascimento da mitologia do fundador-empreendedor, que, não por coincidência, coincidiu com o boom da tecnologia, bem como um aumento significativo na popularidade dos modelos de financiamento de capital de risco e no número de empresas que buscavam acesso ao capital. Nesse ambiente, os magnatas da tecnologia precisavam proclamar ambições de mudança de paradigma para seu trabalho e buscavam formas criativas de narrá-las. Isso se refletiu no gênero literário peculiar que surgiu na época e que até hoje permanece nas listas de best-sellers: a biografia ou autobiografia empresarial evangelística.
Um elemento básico desse gênero, como aponta Khurana, é mostrar como o sujeito alcançou o sucesso apesar dos infortúnios dos primeiros anos de sua vida: a gagueira no caso de Jack Welch da Chrysler, a dislexia de John Chambers da Cisco. Hagiografias mais recentes seguiram essa tendência: o estudo de Walter Isaacson sobre Steve Jobs se concentra em sua adoção na infância e no diagnóstico de câncer de pâncreas, enquanto o retrato de Elon Musk feito por Ashlee Vance explica os efeitos do bullying e da ruptura do casamento neste “Tony Stark da vida real”.
O culto ao “inovador” pode ser mantido na década de 2020? Considere a apresentação de Steve Jobs na MacWorld 2007, uma cerimônia pomposa na qual a Apple anuncia seus próximos produtos. Em seu discurso principal, Jobs listou os três novos dispositivos a serem lançados naquele ano – “um iPod com controles de toque, um telefone e um dispositivo inovador de comunicação pela Internet” – antes de levantar o véu para revelar que essas eram, na verdade, as funções de um único dispositivo híbrido, o iPhone. Esse se tornou o modelo predominante de inovação tecnológica: o que Jason E. Smith chama de “canivete suíço do século XXI”, por meio do qual as capacidades e os recursos existentes são misturados, assimilados, adaptados e incorporados em ferramentas compostas multifuncionais. Os aparelhos de consumo das últimas décadas são quimeras engenhosas que podem recombinar e aprimorar superficialmente funções tecnológicas conhecidas. Na visão de Smith, isso indica a ausência sistêmica do tipo de inovação revolucionária que outrora transformou o cotidiano da população em geral – automóveis, ferrovias, eletrificação, telecomunicações, fotografia e cinematografia – e que trouxe ganhos significativos de produtividade para a economia capitalista como um todo.
Hoje, a reprodução dessa inovação por recombinação está ocorrendo em nível corporativo. A morte do laboratório de pesquisa interno, outrora sinônimo de instituições como o Bell Labs ou o Projeto Manhattan, sinaliza uma estratégia organizacional que Nancy Ettlinger chama de “paradigma da abertura”, por meio da qual as empresas reduzem ou eliminam o investimento interno em Pesquisa & Desenvolvimento, optando, em vez disso, por uma prática coordenada de inovação tericeirizada, caracterizada pelo fornecimento externo de pesquisa, tecnologia e habilidades. Assim como o iPhone, a empresa de tecnologia do século XXI torna-se uma ferramenta composta, uma coleção heterogênea de patentes e licenças proprietárias, de vendedores e fornecedores contratados, de divisões e equipes autônomas, de projetos e estruturas de código aberto, de integrações de terceiros e provedores de nuvem, de aplicativos e plataformas de navegador nativos e competências educacionais transferíveis reunidas em um pool corporativo transnacional. Em meio a esse fluxo, o CEO deve projetar uma imagem de unidade e integridade. Entretanto, quando o valor de mercado de uma empresa cai, o CEO é revelado como apenas mais uma unidade modular na panóplia de recursos.