Estudo de uma ultradireita peculiar: sem criar um Estado policial nem cancelar eleições, premiê húngaro submeteu sistema político-eleitoral, Judiciário e mídia – até asfixiar a oposição. Por que alguns sonham com a exportação do modelo
Milhares de pessoas protestaram em Budapeste nesta terça-feira (26), em uma área próxima ao Parlamento. Pediam a renúncia do primeiro-ministro Viktor Orbán e de seu procurador-geral. A manifestação foi organizada após a divulgação de um áudio feito por um ex-funcionário e ex-aliado do governo, Péter Margyar, em um diálogo com sua esposa e ex-ministra da Justiça, Judit Varga, apontando para uma tentativa de adulteração de documentos para acobertar um caso de corrupção envolvendo Pál Vílner, ex-secretário de Estado do Ministério da Justiça.
As manifestações são incomuns na Hungria atual, país em cuja embaixada Jair Bolsonaro se hospedou entre os dias 12 e 14 fevereiro e para o qual, suspeita-se, poderia pedir asilo político caso avancem os processos que podem condená-lo à prisão. Mas o que haveria por trás desta preferência húngara do ex-presidente? E por que Orbán desponta, nos últimos meses, como alguém relevante, na caterva de líderes da “nova” ultradireita?
A história começa em 2010. Ao longo dos últimos 14 anos, Viktor Orbán construiu uma espécie de “fascismo soft”, para usar a expressão de Zack Beauchamp, repórter sênior do Vox. “A oposição não foi esmagada – mas não consegue respirar”, relata o professor assistente de Política Comparada na Universidade de Georgetown atualmente bolsista visitante na Universidade de Harvard, Gábor Scheiring (confira entrevista concedida por ele ao Outras Palavras). Um conjunto de mudanças institucionais fechou o regime, submetendo o sistema eleitoral, o Judiciário e a mídia ao controle autoritário do primeiro-ministro e de seu partido, o Fidesz. Uma atividade intensa nas redes sociais, com ampla divulgação de fake news, ampliou este controle e laços especiais da presidência com certos empresários garantiram o financiamento do esquema – em troca de favores.
Como resultado, Orbán conseguiu formatar um modelo autoritário com aparência aparentemente legal, algo que não é exatamente novo e que vem se tornando tendência em diversas partes do mundo. Um sistema que, embora sem recorrer a um Estado policial, “visa acabar com a dissidência e assumir o controle de todos os aspectos importantes da vida política e social”, segundo Beauchamp. É este governante que troca elogios com Bolsonaro e talvez o inspire. Vale conhecer ponto por ponto o sistema político que ele construiu.
Virando à (extrema) direita
Nem sempre Viktor Orbán esteve no espectro da extrema direita, diferentemente de outras lideranças do campo que chegaram ao poder nos últimos anos. Em 1998, quando foi eleito primeiro-ministro pela primeira vez, governou como um conservador relativamente convencional, postura que mudou após o Fidesz perder as eleições de 2002 para uma aliança comandada pelo Partido Socialista.
Assim como acontece com extremistas derrotados em diversos lugares, Orbán e seus seguidores nunca aceitaram a derrota de 2002 como legítima, acusando seus oponentes de fraude eleitoral. Em entrevistas, atribuiu ainda sua derrota aos meios de comunicação e à influência do capital internacional. “Orbán mudou visivelmente depois de 2002”, conta a ex-companheira de militância do primeiro-ministro húngaro, Zsuzsanna Szelényi, em Tainted Democracy. Após o resultado, foi criada uma rede de grupos de campanha (chamados “cívicos”) para promover os ideais do Fidesz, particularmente sobre questões de identidade nacional e religiosa.
“Depois de também perder a eleição subsequente em 2006, Orbán deixou de lado seus colegas mais moderados. Quando o governo liderado pelos socialistas após a eleição de 2006 cometeu um erro político – um discurso do primeiro-ministro vazou, no qual ele admitiu que o partido mentiu durante a campanha sobre a situação da economia – Orbán lançou um ataque político agressivo para removê-lo do poder”, lembra Szelényi em artigo publicado em 2015. “Ele polarizou o discurso público, retratando a coalizão do governo liberal de esquerda como o adversário da nação e promoveu agitação para mobilizar constantemente as ruas.” Embora seus esforços para remover a coalizão governista do poder não tenham tido sucesso àquela altura, o governo foi obrigado a ir para a defensiva.
Seguindo a mesma toada, ao realizar um discurso em 2009 em uma reunião a portas fechadas, Orbán anunciou a necessidade de “estabilidade política” na Hungria, pedindo a criação de um “campo político central” que governaria o país por até 20 anos, suprimindo na prática o bipartidarismo dominante até então.
Controle da mídia
“O primeiro movimento que o Fidesz fez após a vitória eleitoral em 2010 foi adotar a legislação da mídia. Naquela época, Orbán disse que essa medida era uma ‘correção’ para o viés esquerdista na mídia do país. As disposições legais então recém-adotadas, vagas e ambíguas, exigindo, entre outras coisas, que o conteúdo da mídia fosse ‘equilibrado’ e não incitasse o ódio ‘contra qualquer maioria’, visando a intimidação de jornalistas independentes”, contava, em 2017, o diretor do Centro de Mídia, Dados e Sociedade (CMDS) da Escola de Políticas Públicas (SPP)da Central European University, Marius Dragomir.
Mas a estratégia era mais ampla e contava com a participação de empresários próximos de Orbán. Algumas fusões de grupos de comunicação foram negadas pelo Conselho de Mídia, enquanto outras eram estimuladas pelo governo, de acordo com o grau de “amizade” dos interessados com o Fidesz. Em agosto de 2017, os últimos cinco jornais independentes que haviam na Hungria foram comprados por oligarcas aliados do governo.
À época, a ONG Repórteres Sem Fronteiras criticou as negociações. “Essas últimas aquisições de apoiadores do partido no poder são mais uma confirmação do desejo do governo de controlar a mídia”, pontuava a entidade. “Este golpe para a independência da imprensa regional é o mais perturbador no período que antecede as eleições parlamentares.” Eleições estas vencidas pelo Fidesz.
Em 2018, no entanto, o plano deliberado de promover a concentração de mídia pró-governo atingiu seu ápice quando os investidores favoráveis a Orbán “doaram” 467 meios de comunicação, muitos dos quais originalmente adquiridos com empréstimos de bancos estatais, para a Central European Press and Media Foundation (Kesma), sob controle efetivo do governo. Isso facilitou a gestão financeira e o controle de conteúdo em relação aos meios de comunicação pró-governo. A formação da holding em um único dia foi tão bizarra que obrigou o governo a emitir um decreto classificando tais transações como de “importância estratégica nacional”, evitando qualquer questionamento em relação à lei da concorrência.
A publicidade estatal também foi direcionada de forma a sufocar os independentes. A emissora pró-governo TV2 recebeu 67% da publicidade estatal no setor de televisão, no ano de 2018, enquanto a independente RTL Klub, de alcance similar, recebeu apenas 1%, segundo relatório divulgado em 2019.
Mudando as regras do jogo
Uma reforma eleitoral promovida após a vitória do Fidesz em 2010 praticamente inviabilizou a vitória da oposição em vários locais do país. Na Hungria, os parlamentares são eleitos em sistema distrital misto e o partido refez os desenhos dos distritos adotando o chamado gerrymandering, comum em algumas unidades federativas dos Estados Unidos, que realizam o chamado redistritamento após a divulgação dos censos. Muitas vezes governadores adaptam os territórios para favorecer o partido no poder, mas se nos EUA há duas legendas em disputa, o redesenho húngaro foi dominado unicamente pelos interesses de Orbán.
No sistema húngaro são dados dois votos, um para um representante do seu círculo eleitoral de origem e outro para um partido. Em 2014, após as mudanças, o Fidesz obteve 45% dos votos mas levou dois terços dos assentos, enquanto outros três partidos conseguiram 51% e ficaram com um terço. A legislação nova deu mais assentos no Parlamento aos círculos eleitorais (106) do que àqueles eleitos por lista (93). Isso deu mais peso aos distritos remodelados, ajudando na formação de um resultado absolutamente desproporcional em favor do partido governista, que teve 45% dos votos nos círculos eleitorais individuais em 2014 e ainda assim obteve 88% dos assentos.
Em uma análise publicada depois dos resultados daquela eleição, o economista Paul Krugman dissecou os dados e concluiu que a “maioria absoluta” conquistada então “veio de uma variedade de truques legais contidos nas leis que foram escritas pelo Fidesz, para o Fidesz”.
Ainda havia mais alterações sob medida para favorecer os que estavam e ainda estão no poder. “Outra mudança complicada feita pelo Fidesz foi dar dupla cidadania aos húngaros étnicos que nunca viveram na Hungria. Com a nova Constituição de Orbán, cerca de 600 mil húngaros étnicos que são altamente favoráveis à direita receberam o direito de voto, ao mesmo tempo em que foi muito mais difícil para os cidadãos húngaros que vivem no exterior participarem das eleições”, explicou a secretária do Tribunal Constitucional Federal Alemão e editora associada do Verfassungsblog, Anna von Notz, em artigo publicado após a terceira vitória do partido governista húngaro em 2018.
Ela pontua que a mudança mais impressionante foi a chamada “compensação vencedora”. Em sistemas eleitorais mistos, muitas vezes um voto para um único candidato que perde o distrito é usado para complementar os totais na lista do partido. No caso húngaro, foi criado um sistema do avesso. Além de ganhar o mandato individual, os votos excedentes em relação àquilo que o candidato precisava para ganhar vão para a lista. Ou seja, o partido que venceu o distrito (que, como vimos foi redesenhado em favor do Fidesz) ganha mais votos no cálculo da lista partidária.
“A fraude eleitoral pode não acontecer apenas no dia da eleição. Nas autocracias modernas, assim como as ferramentas da repressão são muito mais sofisticadas do que nas ditaduras clássicas, as formas de manipular a eleição não consistem apenas em falsificar os resultados. A situação eleitoral é pré-organizada para produzir o resultado que os incumbentes querem: é isso que é uma eleição manipulada”, apontam os pesquisadores Bálint Magyar e Bálint Madlovics, do Instituto de Democracia CEU, em seu relatório sobre as eleições húngaras de 2022.
Justiça de mãos atadas
Sistemas de Justiça em geral costumam ser alvo de partidos e regimes de extrema direita. Buscando ampliar seu raio de ação sem qualquer constrangimento legal, o objetivo é cercear a ação do Judiciário ou mesmo dominá-lo. Foi o que aconteceu na Polônia sob o governo do Partido Lei e Justiça (PiS), que promoveu, entre outras reformas no setor, normas dando ao Legislativo o poder de nomear integrantes do Conselho Nacional do Judiciário, órgão de supervisão dos magistrados, assim como a prerrogativa de escolher e destituir presidentes do Supremo Tribunal.
Na Hungria, o modelo de nomeação de juízes constitucionais, que incluía tanto o governo quanto a oposição, foi substituído por um novo processo assegurando que a vontade do partido no poder iria prevalecer. A mudança foi feita logo em 2010, quando Orbán assumiu, e foi aprovado ainda um aumento no número de titulares do Tribunal Constitucional, que passou de 11 para 15. Outra alteração se deu na escolha do presidente da Corte, que antes era definida por seus próprios integrantes e passou a ser feita por uma maioria de dois terços no Parlamento.
Com a redução do limite para aposentadoria compulsória de 70 para 62 anos, em 2013, o Fidesz já tinha a maioria dos membros do Tribunal. “É revelador, por exemplo, que dos 26 casos iniciados pela oposição e decididos entre 2014 e 2020, o Tribunal Constitucional constatou violações parciais da Constituição em apenas 2 casos, enquanto todas as outras moções foram completamente mal sucedidas”, aponta o pesquisador de pós-doutorado na Universidade Livre de Bruxelas e especialista sênior em Estado de Direito da União das Liberdades Civis para a Europa, Viktor Z. Kazai, em artigo.
Kazai destaca ainda que, nos últimos sete anos e meio, a presidência da Corte ficou nas mãos de Tamás Sulyok, hoje presidente do país escolhido pelo Parlamento, após a renúncia de Katalin Novak, evidenciando a ligação política entre o Fidesz e o magistrado. “E é um sinal claro da falta de independência e autonomia do Tribunal o fato de este ter quase invariavelmente decidido a favor dos partidos governantes em casos politicamente sensíveis.”
Inúmeras outras mudanças foram feitas para ampliar o domínio do governo sobre o Judiciário. Em 2018, o Parlamento aprovou um projeto dando ao ministro da Justiça a palavra final sobre a nomeação, promoção e salário dos juízes. Por conta destas iniciativas, instituições da União Europeia implementaram processos contra o governo húngaro que bloquearam recursos para o país, existindo até mesmo a possibilidade de a Hungria perder seus direitos de voto na UE.
Sob pressão, Orbán promoveu em 2023 novas reformas buscando atender parte das demandas do bloco em relação à independência do sistema de Justiça. Mesmo consideradas insuficientes, as alterações fizeram com que a Comissão Europeia desbloqueasse em janeiro 10,2 bilhões de euros do Fundo de Coesão, destinado a ajudar os países a manter sua infraestrutura nos padrões da União Europeia. Trata-se de uma ajuda fundamental para a Hungria, que terminou o ano de 2023 com uma inflação de 17% e perspectiva de contração do PIB de 0,8%.
Modelo exportação?
Nos discursos do Fidesz e de seu líder Viktor Orbán, por conta das restrições e dos processos em curso sobre o governo húngaro, o inimigo de ocasião hoje é a União Europeia. Mas, como em todo espectro da extrema direita, este é um papel que muda conforme os ventos políticos. Os comunistas já foram os inimigos principais, assim como os social-democratas, ONGs, George Soros, imigrantes… A estratégia clássica utilizada para manter sua base mobilizada.
As redes sociais na Hungria também são um instrumento importante para difundir o discurso de ódio e fake news. A organização Human Rights Watch entrevistou especialistas em privacidade e proteção de dados, integridade eleitoral e campanhas políticas, além de empresas envolvidas em campanhas baseadas em dados para analisar a campanha eleitoral de 2022. Segundo eles, as plataformas de mídia social desempenharam um papel importante, embora complexo, nas eleições de 2022.
“Por um lado, os anúncios políticos online criaram novas oportunidades para as campanhas da oposição chegarem aos eleitores num ambiente onde estes estão em grande parte excluídos dos espaços publicitários tradicionais. Por outro lado, uma vez que as leis nacionais que regulam os limites de despesas de campanha não estão sendo aplicadas aos anúncios online, a disponibilidade de publicidade no Facebook, em particular, beneficiou tremendamente o Fidesz, que com os seus recursos descomunais gastou mais do que a oposição”, diz a entidade.
A investigação também descobriu algo grave, a coleta de dados por parte do governo para uso político-eleitoral. “A Human Rights Watch descobriu que o governo reaproveitou os dados coletados de pessoas que se inscreveram para a vacina contra a covid-19, solicitaram benefícios fiscais ou se registraram para ser membros de uma associação profissional, para espalhar as mensagens de campanha do Fidesz. Por exemplo, as pessoas que enviaram seus dados pessoais a um site administrado pelo governo para se registrar para a vacina contra a covid-19 receberam mensagens políticas destinadas a influenciar as eleições em apoio ao partido no poder.”
O modelo Orbán conseguiu até agora ser vitorioso com essa mescla de mobilização permanente em defesa de valores tradicionais, medidas autoritárias e de controle que minam qualquer oposição, conseguindo chegar a uma parcela da população empobrecida pela adoção de medidas neoliberais e privatizantes na primeira década dos anos 2000.
“O Fidesz formou um pequeno grupo de capitalistas próximos do governo, ao mesmo tempo que prossegue com uma política muito antissindical”, disse ao Le Monde o economista da Universidade de Viena Joachim Becker. Como o capital quase nunca se importa com o grau de democracia de um país, Orbán conseguiu atrair investimentos da Audi, BMW e Opel, que criaram fábricas no país, gerando empregos importante no contexto húngaro pós-crise de 2008.
“Uma das partes mais desconcertantes de observar o fascismo húngaro soft de perto é que é fácil imaginar o modelo sendo exportado. Enquanto o regime de Orbán surgiu da história e da cultura política únicas da Hungria, seu manual para repressão sutil poderia, em teoria, ser administrado em qualquer país democrático cujos líderes tenham tido o suficiente da oposição política”, pontua Zack Beauchamp. Evitar a exportação do “modelo Orbán” para o resto do mundo implica em discutir os mecanismos da democracia e o que ela oferece à boa parte do excluídos social e economicamente, hoje seduzidos pelas promessas e soluções simples dos extremistas.