Há 50 anos, dois países destacados do Sul Global firmaram relações diplomáticas. Agora, poderiam buscar formas de cooperação que desafiem as lógicas eurocêntricas e envolvam da reindustrialização brasileira à Amazônia e à Internet
Em setembro de 2023, o Conselho de Estado da China publicou sua proposta para uma Comunidade Global de Futuro Compartilhado. O novo conceito sistematiza três pronunciamentos feitos por Xi Jinping em palcos internacionais a partir de 2013. O texto o apresenta de forma discreta. Mas a ideia tem, quando decifrada, enorme capacidade de transformar o cenário geopolítico atual, marcado pela hegemonia norte-americana e suas crises.
Pequim questiona as bases políticas e éticas da ordem internacional eurocêntrica, que domina o mundo há cinco séculos. Relações tidas hoje como naturais – a aspiração à condição de hegemon; a pressão dos países ricos sobre os pobres, para obter vantagens; a competição como mola propulsora principal do progresso, entre outras – são consideradas anacrônicas. Propõe-se, em contrapartida, as noções de que a Terra é a “casa comum”, cujo cuidado precisa prevalecer sobre os lucros e o exercício do poder; de que as riquezas devem ser partilhadas, pois a prosperidade não é aceitável se for excludente; de que um sistema internacional só será democrático se for menos hierárquico; de que as parcerias entre os países podem ser mutuamente favoráveis, em vez de leoninas.
1. Neoindustrialização do Brasil e espaço seguro para empresas chinesas:
A China tornou-se, há anos, a fábrica do mundo. Estima-se que seja, sozinha, responsável por 30% da produção industrial do planeta. Mas seu crescimento tem sido ameaçado pela imposição de barreiras tarifárias, pela tentativa dos EUA de negar-lhe acesso aos chips de última geração e pelos processos de reshoring e friendshoring, por meio dos quais o Ocidente busca relocalizar indústrias estratégicas em territórios que vê como “seguros”. O Brasil precisa, ao contrário, superar a desindustrialização mais dramática da história, ocorrida nas últimas quatro décadas. O país, que reunia até os anos 1980 a indústria mais avançada e diversa entre os países do Sul, é agora apenas o 16º produtor industrial do planeta, com mero 1,2% do valor gerado.
O tema voltou à pauta no governo Lula, com o lançamento do programa Nova Indústria Brasil. Mas os recursos financeiros disponíveis ainda são muito limitados. Uma parceria industrial estratégica com a China daria impulso novo ao projeto. Ela pode assumir múltiplas formas: transferência de tecnologia, facilidade para implantação de indústrias chinesas, sociedades entre empresas dos dois países. O Brasil poderia, inclusive, apropriar-se da vasta experiência acumulada pela China nas relações com o capital externo – cuja presença esteve sempre condicionada a cumprir objetivos econômicos, sociais e ambientais fixados pelo Estado.
A China não tem um SUS. Mas é extremamente eficaz e inovadora em tecnologias ligadas à Saúde. Também empregou intensamente a Inteligência Artificial (IA) no esforço vitorioso de superação da pobreza extrema. A possível parceria salta aos olhos. O acesso às tecnologias chinesas contribuiria para revolucionar o SUS. E examinar a experiência do sistema brasileiro – inclusive sua capacidade de gerar postos de trabalho para as novas gerações –, em intercâmbio com sanitaristas brasileiros, poderia ser muito inspirador para a China.
3. Biocivilização solidária na Amazônia:
Uma parceria entre os dois países pode criar, pela primeira vez, as condições para a realização deste projeto. O Brasil ofereceria à China acesso à região. Ele estaria ligado à construção de novas relações humanas e com a natureza: desmatamento zero, consentimento informado e participação ativa dos povos originários, condições de trabalho dignas, políticas públicas de excelência, infraestrutura ligada à preservação do bioma.
Uma parceria com a China pode mudar este cenário. Ela envolveria a Petrobras e uma Eletrobrás reestatizada. Tecnologias avançadas, já existentes, permitiriam instalar painéis solares móveis sobre os lagos das hidrelétricas e turbinas eólicas em alto mar. Nas cidades, um programa de autogeração por placas solarse instaladas sobre os tetos de casas e prédios poderia gerar milhões de ocupações dignas. O Brasil, abundante em petróleo, pode pagar pela tecnologia assegurando à China fornecimento estável do combustível, do qual a humanidade ainda necessitará por algumas décadas. Será uma maneira muito efetiva de usar os combustíveis fósseis para a transição rumo a energias sem carbono.
A China tem corporações de internet tão desenvolvidas quanto as estadunidenses. O TikTok tornou-se a rede social que mais cresce no mundo. O Alipay faz tantas transações comerciais quanto a Amazon e a eBay juntas. O Wechat (da Tencent) e o Baidu oferecem alternativas reais ao Whatsapp e ao Google. No entanto, exceto o TikTok, nenhum deles tem a abrangência global de seus congêneres dos EUA.
Numa possível parceria, as empresas chinesas forneceriam tecnologia para uma infraestrutura de armazenamento de dados e de redes controlada pelo país e localizada em nosso território. Talvez pudessem cooperar com a criação de plataformas próprias. Em contrapartida, romperiam uma barreira que as limita ao terem, pela primeira vez, acesso ao público de um país ocidental relevante e populoso.
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Ideias como estas podem transformar as relações entre China e Brasil. O comércio bilateral multiplicou-se nos últimos anos e se aproximou de 150 bilhões de dólares em 2023. A China, sozinha, tornou-se o destino de mais de 40% das exportações brasileiras. Mas quase 100% da pauta exportadora brasileira estão concentrados em bens primários (soja e minério de ferro, sozinhos, compõem 56% das vendas). A extração destes produtos – dado o ordenamento colonial da sociedade brasileira – concentra riquezas, agrava a regressão econômica do país, elimina ou precariza trabalho e devasta o ambiente.
Às alternativas acima, poderiam ser acrescentadas inúmeros outros: por exemplo, na cooperação científica, finanças, moedas internacionais (para superar a ditadura do dólar), relações geopolíticas, forças armadas. As oportunidades para parcerias entre Brasil e China são incontáveis – desde que a relação passe a ser presidida não pelo interesse de lucro, mas pela vontade de construir, de forma consciente um “futuro compartilhado”. Possível primeiro passo: o governo brasileiro deveria aceitar o convite generoso feito pela China, e somar-se à Iniciativa do Cinturão e da Rota.
Transformar as relações internacionais está entre os desafios políticos mais árduos e complexos. A fase mais recente da globalização criou uma esfera mundial de poder para a qual não há, no momento, governança democrática. O novo conceito proposto por Pequim é um primeiro passo, pois introduz a hipótese de parcerias constituídas não a partir das lógicas mercantis, mas da reflexão sobre as necessidades reais e desejos das sociedades fazem para seu futuro. A jornada será longa. Mas como dizia Gautama, o Buda, “toda longa caminhada começa com um primeiro passo”.