Uma estrutura colossal de vidro, com sete andares e bordas sinuosas, iluminada 24 horas por dia.
Por suas características, a Biblioteca Nacional de El Salvador caberia mais no Vale do Silício ou na cidade de Londres.
Mas fica no coração da capital salvadorenha, em contraste com o neoclássico Palácio Nacional e a catedral.
É talvez o símbolo mais literal do país renovado que o presidente Nayib Bukele ostenta após cinco anos no cargo, cuja política principal é a pacificação daquele que foi o país mais violento da América Latina, com o seu exitoso e polêmico combate às gangues locais.
Mais uma vez candidato à chefia do Executivo, Bukele, que como um bom ex-publicitário tem uma preocupação em manter uma imagem poderosa, inaugurou a biblioteca em 14 de novembro de 2023, em plena campanha para as eleições gerais de 4 de fevereiro.
As pesquisas têm antecipado a vitória dele com percentuais acima de 90%, o que o confirmaria como o presidente mais popular da América Latina.
Conquistada a pacificação, seu segundo mandato poderá focar na modernidade que se reflete na Biblioteca e pela qual também optou anos atrás como prefeito da capital.
Para isso, conta com um aliado fundamental: a China.
O governo do país asiático financiou a biblioteca e pagará alguns dos planos de construção que prometem monopolizar os olhares nos próximos cinco anos, nos quais, caso Bukele seja reeleito com as pesquisas apontam, o atual presidente comandará uma gestão que especialistas definem como "o mandato dos megaprojetos".
Quando Bukele viajou à China em dezembro de 2019, já como presidente, ele reforçou a decisão de seu antecessor, Salvador Sánchez Cerén, que um ano antes havia rompido relações diplomáticas com Taiwan e abraçou o gigante asiático.
Embora Taiwan tenha se separado da China em meio à guerra civil em 1949, a China vê a ilha como uma província rebelde e continua a considerando como parte de seu território.
Como candidato e depois durante uma viagem como presidente aos Estados Unidos, Bukele criticou a China.
No entanto, em uma reviravolta que muitos apontam como característica do seu perfil político sem ideologia clara e que se adapta às circunstâncias, durante uma visita de Estado de seis dias, Bukele recebeu um doutorado honorário da Universidade de Pequim e posou para uma foto com o presidente chinês Xi Jinping.
Depois da pompa, anunciou que aprovou a concessão de "uma gigantesca cooperação não reembolsável" a El Salvador, que mais tarde seria estimada em US$ 500 milhões (cerca de R$ 2,4 bilhões).
A ajuda, disse então, iria para projetos de infraestrutura e outras obras.
"China e El Salvador são novos amigos e parceiros", leu Ou Jianghong, então embaixadora da China em El Salvador, durante a cerimônia de lançamento da obra da Biblioteca Nacional, em 5 de fevereiro de 2022.
Bukele aproveitou o acordo com a China que havia sido firmado pelo seu antecessor, que perdeu as eleições de fevereiro de 2019, e os resultados dessa parceria entre os países começaram a ser vistos nos primeiros meses da nova presidência.
"Desde então, tem havido menos atividade do que muitos esperavam, porque se falava de um possível projeto portuário e de uma zona econômica especial que cobriria uma grande parte do país, planos com implicações realmente importantes para o país", diz Margaret Myers, diretora do Programa Ásia e América Latina do Diálogo Interamericano, um centro de pesquisas com sede em Washington (EUA), especializado em relações internacionais do hemisfério ocidental.
"O que se materializou até agora são projetos menores, mais emblemáticos da 'diplomacia de cheques' que vimos com a China há uma década, mas que definitivamente fazem parte da agenda de Bukele", acrescenta Myers em entrevista à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
A primeira obra inaugurada foi a biblioteca, em 14 de novembro de 2023.
O sol já tinha se posto e a iluminação artificial tornou o edifício ainda mais impressionante.
O presidente saiu de uma van preta com seu irmão Karim Bukele, que foi seu gestor de campanha para as eleições de 2019 e também é o responsável pela deste ano, e que, mesmo sem ocupar um cargo público, tem tido papel ativo nas relações entre os executivos salvadorenho e chinês.
Ao menos foi assim que ele foi reconhecido pela representante anterior da China em El Salvador, após visita de Bukele ao país asiático.
Na entrada da inauguração, foram recebidos pelo vice-ministro da Cultura Eric Doradeo e pelo atual embaixador chinês em El Salvador, Zhang Yanhu, para uma visita filmada às instalações.
Através do vídeo oficial, os cidadãos descobriram que se trata de uma construção de 24 mil metros quadrados, realizada com um investimento de US$ 54 milhões (cerca de R$ 167 milhões) doados pela China e uma contrapartida de US$ 10 milhões (cerca de R$ 49 milhões) do governo salvadorenho.
É "a maior e mais moderna da região", segundo Doradeo, e tem capacidade para mais de 360 ??mil livros, conexão à internet, espaço para a primeira infância, salas temáticas e de jogos, espaços de realidade virtual e simuladores de voo, entre outros.
E fica à disposição da população 24 horas por dia, 365 dias por semana.
"O fato de vivermos num país seguro, onde basicamente não existe nenhum lugar inseguro em todo o território, permite que as pessoas possam vir quando quiserem", disse Bukele.
E aproveitou a ocasião para enfatizar o sucesso da principal política do seu governo: a segurança.
Com essa política, ele desferiu um golpe sem precedentes nas gangues que aterrorizaram o país durante décadas e ele levou a taxa de homicídios a mínimos históricos, ao mesmo tempo em que disparou a taxa de encarceramentos.
Essa conduta lhe rendeu queixas por violações dos direitos humanos, mas também deu a ele o alto índice de aprovação que possui atualmente.
Com o edifício agora aberto ao público, três outros projetos financiados pela China estão em construção.
Estão em andamento as obras do cais turístico de La Libertad, 30 quilômetros a sul de San Salvador, "um investimento de US$ 24 milhões (cerca de R$ 118 milhões)", segundo o ministro das Obras Públicas, Romeo Rodríguez.
Também está em andamento a construção de uma estação de tratamento de água no Lago Ilopango, que segundo o governo beneficiará mais de 250 mil habitantes da periferia da capital salvadorenha.
E já teve início a obra de um novo Estádio Nacional, que, segundo o governo, terá capacidade para 52 mil espectadores e contará com um campo de futebol profissional, dois campos de basquetebol, um campo standard e estacionamento para 1.400 viaturas.
Com um orçamento de US$ 100 milhões (cerca de R$ 490 milhões) e inauguração prevista para 2027, pretende ser o maior recinto desportivo da América Central e o mais moderno da América Latina, disse Bukele no dia 30 de novembro.
Uma obra de referência, "que representa o desenvolvimento e o futuro de El Salvador como país".
O mecanismo com o qual a obra está sendo financiada é uma "cooperação não reembolsável e incondicional", disse o próprio Bukele em 2019, após a visita a Pequim.
"A China também forneceu projetos semelhantes a outros países em desenvolvimento e nunca os utilizou para buscar alegados interesses geopolíticos", afirmou a Embaixada da China num comunicado partilhado no Twitter.
"Senhor Presidente, nada da China vem sem condições", respondeu a Bukele nesse contexto a subsecretária interina para Assuntos do Hemisfério Ocidental do Departamento de Estado dos EUA, Julie Chung.
Tal como ela, há muitos que questionam se os recursos são realmente sem compensação e se há outra coisa para a qual poderiam ter sido utilizados.
Nesse sentido, num primeiro momento alguns analistas apontaram que Bukele via a China como um "cartão de crédito" que lhe permitiria pagar a dívida pública do país.
Até 23 de janeiro de 2023, teve de desembolsar US$ 800 milhões (quase R$ 4 bilhões) para a amortização de uma dívida externa adquirida por governos anteriores, e o Fundo Monetário Internacional tinha nessa altura enterrado a possibilidade de lhe conceder um empréstimo.
O fato de o vice-presidente Félix Ulloa ter dito, em novembro de 2022, no evento Fórum Europa em Madrid, que a China tinha se oferecido para comprar "toda a dívida externa" reforçou essa hipótese.
"Embora devamos ter cuidado", acrescentou. "Não vamos vender para o primeiro solicitante, temos que ver as condições."
Ele rapidamente se distanciou das suas próprias declarações, garantindo que foram descontextualizadas pelos meios de comunicação, depois de tanto o Ministério das Finanças salvadorenho como o Ministério dos Negócios Estrangeiros da China terem negado ter conhecimento da referida oferta.
Após operações de recompra de dívidas e de uma reforma do sistema de pensões, em janeiro Bukele anunciou triunfalmente que a conta estava acertada, sem conseguir esclarecer as dúvidas dos especialistas sobre a saúde financeira do país.
Especialmente tendo em conta que em 2027 terá de pagar outro vencimento da dívida total, desta vez de quase US$ 2,7 bilhões.
"A situação é muito crítica, a tal ponto que o governo salvadorenho parece disposto a assinar um acordo com o FMI que possa ajudar a resolver o problema fiscal, mais do que com o governo chinês", diz Lourdes Molina, coordenadora para El Salvador do Instituto Centro-Americano de Estudos Fiscais.
Em outubro, Bukele confirmou que as negociações com o FMI "continuam", enquanto o chefe do Departamento do Hemisfério Ocidental da organização, Rodrigo Valdés, garantiu que estão "trabalhando muito bem" com as autoridades de El Salvador.
Myers, do Diálogo Interamericano, também duvida que os fundos "não reembolsáveis" de Pequim possam ser utilizados para esse fim.
Embora reconheça a falta de transparência e de responsabilização a esse respeito, está inclinada a pensar que se trata de subvenções e não de empréstimos e que estão ligados aos projetos de desenvolvimento específicos já mencionados.
"E também não creio que seja uma situação de quid pro quo, em que Pequim espera mais de El Salvador do que o fato de continuar a fortalecer os laços."
Nessa linha, ambos os países já tornaram público o interesse em iniciar negociações para um Tratado de Livre Comércio (TLC).
Se isso for concretizado, será somado ao compromisso já assumido por Bukele durante a sua visita à China em 2019, quando anunciou que participaria do Belt and Road Initiative (BRI), que em português pode ser traduzido como "Iniciativa Um Cinturão, Uma Rota".
Conhecida como "a nova rota da seda", é uma iniciativa por meio da qual Pequim tenta expandir os seus laços comerciais no mundo.
Hoje, 21 países latino-americanos aderiram à iniciativa e, na região, o país asiático mantém acordos de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador e Peru.
Com isso, a China não tem sido apenas uma importante fonte de investimento estrangeiro direto na América Latina desde meados da década de 2010.
É também o principal parceiro comercial da América do Sul e o segundo da América Latina como um todo, depois dos Estados Unidos, segundo dados analisados ??pela edição de 2023 do "Boletim Econômico China-América Latina e Caribe", publicado pelo Centro de Política Global da Universidade de Boston (EUA).
O intercâmbio comercial é considerado extremamente favorável ao gigante asiático.
Bukele garantiu que o TLC com a China abriria "toda uma gama de possibilidades" para El Salvador.
No entanto, o analista Evan Ellis, pesquisador de Estudos Latino-Americanos no Instituto de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra do Exército dos EUA, está convencido de que o futuro dessa relação econômica é também "claramente unilateral".
"Terá a ver com a penetração do mercado salvadorenho com produtos chineses, com a participação chinesa na construção, nas infraestruturas elétricas e de telecomunicações", explica.
Os especialistas consultados pela BBC News Mundo concordam que o principal interesse da China em estabelecer laços com El Salvador é isolar ainda mais Taiwan no cenário internacional.
Desde que a Costa Rica cortou relações com Taipei em 2007, Pequim ganhou terreno na América Central, estabelecendo relações diplomáticas com o Panamá (2017), El Salvador (2018), Nicarágua (2021) e, mais recentemente, Honduras (2023).
"O fato de esses países amigos não estarem na América do Sul, mas a algumas centenas de quilômetros dos Estados Unidos, de terem uma história compartilhada com esse país e estarem integrados em estruturas comuns, isso dá ao objetivo outra dimensão estratégica", diz Ellis, fato que Myers também destaca.
A abordagem da China também ocorre em momentos difíceis para a relação entre El Salvador e os Estados Unidos.
À medida que o período de cinco anos de presidência está prestes a terminar, pouco resta do caso de amor de Bukele com Washington – o seu "aliado mais importante", como definiu após chegar ao poder em 2019 – e do bom relacionamento que teve com o governo de Donald Trump.
Mas os EUA continuam sendo o seu principal parceiro comercial e cerca de 2,5 milhões de salvadorenhos vivem nos EUA, e repassam a maior parte das remessas ao país latino-americano, uma renda que representa mais de 20% do Produto Interno Bruto de El Salvador.
No entanto, as dificuldades entre os dois países foram notadas antes das eleições legislativas de 2021 em El Salvador, quando o partido do governo, Nuevas Ideas, assumiu o controle da Assembleia Legislativa.
Bukele chegou a Washington com a intenção de se reunir com um representante do novo governo de Joe Biden, mas ninguém o recebeu.
Mas talvez o que mais dificultou essa relação tenha sido a inclusão de funcionários do seu governo na "lista Engel", a lista de "atores que minam a democracia" preparada pelo Departamento de Estado.
"Bukele sabe que não obterá o nível de aceitação que gostaria do governo Biden, que os EUA não reconhecerão as suas conquistas na segurança e na luta contra gangues, por isso está se aproximando de Pequim, ainda que com relutância", diz Ellis.
Bukele se beneficia dessa aproximação tendo em vista a sua reeleição em 4 de fevereiro.
A Biblioteca e as imagens informáticas do que será o Estádio Nacional, entre outras, servem para promover o seu projeto político para um segundo mandato, caso consiga uma vitória, dada como certa.
Uma vez alcançada a paz, ele quer agora modernizar o país. E o dinheiro da China é fundamental para reforçar essa mensagem.