Sociólogo vê, na sucessão de crises globais, sinal de grandes mudanças à frente. Neoliberalismo já não produz consensos, e se aproxima do neofascismo. É preciso propor outro futuro às maiorias – e para isso não serve a postura de gerente
Álvaro García Linera é uma referência incontornável para projetos progressistas na América Latina. Como intelectual, devido à potência de suas obras sobre o Estado, a revolução e as maiorias. Como político, por ter sido vice-presidente da Bolívia durante os governos de Evo Morales entre 2006 e 2019. Iván Schuliaquer o entrevistou-o em podcast. A seguir, os melhores momentos di diálogo: o empate na disputa pela hegemonia, os fracassos e os horizontes do progressismo latino-americano, o crescimento e os limites da direita: “Sempre há uma solução progressista”, afirma o entrevistado
Atualmente, a América Latina tem, em sua maioria, governos de centro-esquerda ou de esquerda. A lista incluiu países que não faziam parte da primeira onda no início do século, como o México e a Colômbia. Entretanto, essa segunda onda parece estar muito longe de gerar uma hegemonia semelhante à que a esquerda tinha há uma década. Por quê?
Sim, houve uma primeira onda, com o surgimento de governos progressistas no início do século XXI. Argentina com Néstor Kirchner, Equador com Correa, Bolívia com Evo, Lula em seu primeiro mandato. Começou ainda antes: Venezuela, El Salvador, Nicarágua, Uruguai, Paraguai. E foi uma onda amplamente sustentada pela existência de grandes mobilizações sociais. Uma onda de mobilização é algo decisivo quando se trata de entender o comportamento social, porque rompe os esquemas cognitivos da sociedade: o que é possível, o que é confiável, o que pode ser dito. Se um governo progressista entrar nessa onda, suas possibilidades e chances de transformação serão muito maiores.
Há vários motivos para isso. Um deles é que talvez seja uma onda mais cansada. A primeira foi intensa e esperançosa, de grandes reformas. A segunda onda chega cansada para a batalha. E enfrenta uma direita mais articulada, mais reorganizada após as derrotas de 2003, 2005 e 2010. É mais vocal: vai para as ruas, conduz a batalha cultural à sua maneira, mobiliza, ocupa as redes, é mais agressiva e pode abrir brechas nos erros da esquerda e dos progressistas no poder. Antes, isso não era possível. Éramos quase imaculados porque não tínhamos governado. Mas ao governar, você sempre cometerá erros, falhas, ausências. A direita aparece e coloca sal na ferida para que ela nunca cicatrize.
Mas também porque essa segunda onda não foi acompanhada de grandes mobilizações (com exceção da Colômbia, que tomou as medidas mais radicais). Não se trata mais de uma onda que vem com a força da mobilização. O que aconteceu no Chile, por exemplo, é uma retirada total da mobilização, é uma ressaca, não há nada para impulsionar Boric. Portanto, você tem um progressismo um pouco desbotado e, ao mesmo tempo, lideranças mais moderadas. É um progressismo que vem para administrar e não para transformar.
O progressismo da primeira onda era rupturista. Era como se o mundo tivesse começado com eles: um novo sistema político, um novo sistema de ideias, uma nova economia. O segundo progressismo é administrativo. “Calma, pessoal, vamos administrar o que está aí, ajustando um pouco aqui e ali”. Eles querem fazer parte de um sistema político, enquanto o primeiro progressivismo não queria fazer parte de nenhum sistema político. Lá, o progressivismo era o sistema político. Com ele, o mundo estava ordenado. O segundo progressismo, por outro lado, quer encontrar seu espaço em um sistema político a médio prazo. Eles se tornam mais tímidos, mais calculistas, fazem concessões com mais facilidade. São apaziguados com maior rapidez. E é um progressismo que, por causa disso, da falta de força dos líderes que o impulsionam e da ausência do povo nas ruas, quer preservar o que já existe em vez de conquistar coisas novas.
E, é claro, a direita não perdoa: ela vê você fraco, vê você parar um pouco para beber água e vai para a jugular. Sempre foi assim. Alguns líderes acreditavam que não, que era possível encontrar uma forma de coexistência civilizada com a direita. Não: a direita não perdoa, ela quer ver você no chão. Eles o suportam quando você é forte. Mas quando te veem fraco, vão atrás de você e começam a dançar em seu cérebro.
Essa segunda onda progressista é fraca, não muito densa e, ouso dizer, temporária. Minha hipótese é que, nesses tempos liminares, teremos um progressismo de curta duração e um direitismo de curta duração. Hegemonias curtas, tanto à esquerda quanto à direita. Até que, em algum momento, o destino se realinhe para um lado ou para o outro e se inicie um longo ciclo de 20 ou 30 anos.
Além disso, os momentos nacionais parecem ser menos coincidentes do que antes temidos. Onde você acha que esse jogo acabará sendo definido e de que maneira?
Acredito que este é um momento de transição estrutural global. A América Latina inaugura esse ciclo de transição: um modelo de acumulação de riqueza, de gestão, de produção e de legitimação dessas relações. O modelo neoliberal de livre mercado foi inaugurado na década de 1980 e, por sua vez, substituiu o modelo de estado de bem-estar social (ou desenvolvimentista) iniciado na década de 1940. E o modelo neoliberal entrou em turbulência; ele não desapareceu, mas está começando a desabar. Não gera mais o entusiasmo de antes. Surge a crise global de 2008, depois vem a Covid, depois a guerra na Ucrânia. E então você tem economias do mundo tateando, olhando para o que está por vir e adotando políticas híbridas. Você tem um Trump que está defendendo a proteção dos Estados Unidos. “Os Estados Unidos em primeiro lugar”, diz ele. E então vem Biden, um “progressista”, e diz: “Vamos fabricar pontes, estradas, telefones celulares e carros elétricos americanos com matérias-primas e mão de obra americanas”. Isso era uma loucura há 20 anos, um arcaísmo comunista fracassado. Bem, agora Biden subsidia sua economia; os europeus também, com 3 a 5% de seu PIB para a energia e a indústria.
Você inicia uma busca por modelos alternativos. E agora você tem um momento híbrido: políticas de livre comércio com políticas protecionistas, políticas de globalização com políticas de subsídios. É confuso. A América Latina está no meio desse vórtice, desse rearranjo global.
Não se sabe qual será o novo modelo de acumulação. Há quem diga: “vamos voltar às leis paleolíticas do livre mercado, vamos voltar aos gloriosos anos 90, onde tudo era privatizado ou onde as fronteiras eram abertas”. E outros dizem: “não, vamos fazer essa mistura, essa política anfíbia de globalismo e protecionismo”. Ninguém sabe ao certo o que será melhor no futuro: estão em curso experiências e solavancos. O colapso do antigo regime e a busca por um novo regime econômico e político levarão mais uma década.
Desde 2010, tem havido um caos sistêmico global. Meu palpite é que ainda teremos uma década até que surja o novo modelo de acumulação. Talvez seja esse tipo de economia híbrida de livre mercado com protecionismo. Pelo menos os países mais desenvolvidos estão buscando isso. Ou será um retorno ao livre mercado, mas agora não mais sedutor, mas com o porrete e o bastão atrás dos insubordinados? Qual deles triunfará? O que entrar com mais vigor, conseguir o maior apoio social e estabilizar a economia no longo prazo. Quem conseguir oferecer certeza em um mundo em que se perderam as certezas preditivas das pessoas terá mais opções. E acho que a saída é planetária. A primeira onda na América Latina surgiu com muita força, mas não fomos acompanhados pelo resto do mundo, que ainda glorificava o livre mercado.
Essas questões não são resolvidas regionalmente. Como aconteceu nas décadas de 1940 e 1980, essa é uma questão que será resolvida globalmente. E o novo modelo de acumulação que gera estabilidade, crescimento, distribuição de riqueza e legitimidade política também terá uma solução global. Qual será ela? Há todos os tipos de possibilidades. Os neoliberais estão defendendo um neoliberalismo autoritário, que beira o fascismo. Uma tentativa de resolver problemas, de garantir estabilidade, privatizando tudo, mas agora ignorando as pressões sociais.
Você vem dizendo há algum tempo que isso será resolvido na economia. Até que ponto esses progressismos de que você estava falando colocam o material no centro?
Uma frase poderosa de um revolucionário russo de 100 anos atrás ressoa em minha cabeça: “Política é economia concentrada”. A cultura e a batalha cultural e política são a economia concentrada. Com outros sinais, com outros gestos, mas a economia sempre nos atravessa. E a economia também é política e cultura sublimada. É uma coisa e outra: elas estão entrelaçadas. Não é que, se você resolver a economia, automaticamente resolverá a política. Porque para resolver a economia você precisa de políticas, ideias, esquemas mentais, horizontes preditivos. A política é fundamentalmente a disputa sobre o horizonte preditivo de uma sociedade. A batalha cultural já é uma batalha econômica, e a batalha econômica tem componentes de batalha cultural. E a solução de uma ajuda a solução da outra e vice-versa. Você nunca poderá fazer as transformações sem andar com os dois pés.
Há três anos, em meio à pandemia, tivemos o prazer de entrevistá-lo. Era uma época diferente, em meio à pandemia. Grande parte de sua reflexão teórica tinha a ver com o papel do Estado, sua centralidade. Todos os exegetas do mercado haviam pedido ajuda ao Estado e as pessoas haviam retornado ao impulso primário de pedir proteção ao Estado. Naquele momento, você estava dizendo uma frase que estava de acordo com o que estávamos falando e que eu queria que você ouvisse:
Um cenário de criatividade e articulação social está se abrindo em todo o mundo há algum tempo. E se as forças de esquerda não fizerem seu trabalho, não se esforçarem e não tomarem cuidado, um cenário salvacionista ou autoritário pode facilmente se impor ao longo do tempo nessas fendas. E as saídas autoritárias, como está acontecendo com os países latino-americanos, podem muito bem se irradiar e se espalhar pelo mundo”.
Quase visionário (risos). Continuo com o espírito geral dessa ideia. Quando os antigos sistemas de legitimação política e organização da economia começam a dar errado, a tropeçar, como aconteceu com o neoliberalismo, as elites e as sociedades começam a procurar opções de todos os tipos. Opções progressistas, por exemplo. Se houver líderes ousados que entendam essa mensagem, eles podem se animar e impulsionar a economia: nacionalizar, distribuir e tirar as pessoas da pobreza.
Mas há também propostas muito regressivas que dizem “não, se o neoliberalismo está funcionando mal é porque não foi bem aplicado, porque foi pervertido. Temos que voltar ao núcleo original do verdadeiro neoliberalismo, que é o mercado absoluto e o Estado zero”. Se o governo progressista aumenta as ansiedades das pessoas, em vez de resolvê-las, é claro que você vai encontrar pessoas dispostas a ouvir. Isso, à sua maneira, foi Bolsonaro: privatização.
É lógico que, em tempos de incerteza em que o antigo modelo global não funciona mais bem, surgirão respostas mais autoritárias. E essas respostas serão alimentadas se o progressismo chegar ao governo e não resolver os problemas das pessoas. Isso incentivará os neoliberais a dizer “Estado zero, impostos zero, subsídios zero, vamos voltar ao modelo original”.
Nesse interregno, surgem propostas conservadoras, autoritárias e racistas. É um neoliberalismo que diz: “hoje estamos mal por causa do Estado, dos impostos. Há direitos demais para as mulheres, liberdades demais para os sindicalistas, muita desordem e muitos migrantes tomando nossos empregos”. Essa é uma visão repressiva dos problemas e sua resposta é um retorno ao mercado.
Tudo isso está ao contrário do neoliberalismo da década de 1980, que dizia: “Não há mais opções, senhores. O Muro de Berlim caiu. Venham para cá. Este é o único caminho. Era um neoliberalismo radiante, expansivo e sedutor. Este não, é coercitivo: “se os senhores não se deixarem convencer, uma prisão como a de Bukele [o presidente ulttrapunitivista de El Salvador]”. A linguagem é diferente. A receita econômica ainda é a mesma, mas está atravessada por outra narrativa discursiva de punição, ódio e repressão.
O neoliberalismo autoritário já existe, mas adquirirá maior presença social se um governo progressista que não cumpriu sua promessa. E é por isso que o progressismo não deve procurar ser apenas mais um partido do establishment administrativo moderado. Em tempos turbulentos, a moderação é a sua derrota, o seu fracasso. O progressivismo é obrigado a acelerar a história, a transformar, a correr riscos. Porque se ele não fizer isso e for moderado, os problemas não serão resolvidos. E a “solução” neoliberal e de direita envolve dinamitar o Estado, ou seja, dinamitar os direitos das pessoas. Porque o Estado é o que uma sociedade tem em comum, o repositório do que uma sociedade construiu ao longo de décadas e séculos, de lutas e revoltas, de fracassos e mobilizações. E isso é um obstáculo para o neoliberalismo. Eles querem substituí-lo pelo “privado”. Mas nenhuma nação é uma soma de proprietários privados: isso é um mercado. Uma nação é a soma de nossas vitórias, nosso esporte, nossas lutas, nossas guerras, nossas emancipações, nossas mobilizações, nossos shows, nossas satisfações coletivas que foram sedimentadas e acumuladas como direitos, como narrativa histórica, como heróis, como tradição nacional.
Em um país onde só há proprietários, quem ganha é o maior. O grande proprietário sempre abusará do pequeno proprietário. Mas um país com coisas comuns encontra no comum uma maneira de resistir à fúria do maior, de frear o mais poderoso. Sem os bens comuns, o maior devora você, esmaga você, esmaga você para se tornar maior. É uma questão de propriedade. O que impede essa violência é o bem comum, aquilo que não tem propriedade, que pertence a todos. Ambíguo, abusado, às vezes mal utilizado muitas vezes – mas o Estado é o freio que as sociedades têm para impedir que a grande propriedade as esmague. Este é um momento muito complicado em nível continental e se tornará ainda mais complicado se o progressivismo fracassar e os autoritários entrarem – com tapete vermelho.
E se os autoritários chegam e promovem essas agendas a partir do Estado, que lugar resta para aqueles que apoiam uma agenda progressista, de esquerda e nacional-popular?
Esses neoliberalismos autoritários e repressivos são uma espécie de parque jurássico. O mundo está indo para o outro lado. Os Estados Unidos estão implementando políticas protecionistas em sua competição com a China. Não que sejam keynesianos, mas percebem que, geopoliticamente, se não fortalecerem sua indústria, vão se tornar um supermercado puxado pelos chineses. Assim como a Europa, que gasta 3,5% de seu PIB anualmente para subsidiar suas indústrias e vai proibir certos produtos. A Europa e os Estados Unidos estão se voltando para políticas protecionistas, embora continuem a apoiar seus empresários. E na América Latina, alguns países (como o Brasil com Bolsonaro) quiseram voltar à década de 1990. Isso se mostrou arcaico. Por isso falo num parque jurássico: se o autoritarismo chegar, pode causar muitos danos. Eles são uma viagem no tempo de volta ao passado.
O que resta às forças progressistas? Fazer o que sempre fizeram, mas com mais ousadia. Entender que é hora de lutar. E a América Latina precisa entender que a terceira onda não pode ser uma lembrança melancólica da primeira. A primeira onda cumpriu sua função. E nós, líderes que estávamos lá, fizemos nosso trabalho. Haverá outros, com outras ideias, com outra liderança, com outras propostas, com outra ousadia. O mundo que enfrentamos no início de 2005 é muito diferente daquele de agora. O que fizemos mudou nossos países, mas não podemos continuar repetindo esses discursos, essas canções. Um colega disse: “precisamos de outras músicas”. Eu gosto disso. É preciso outra melodia na onda que virá. E isso significa novos líderes que olhem com respeito para o que fizemos antes, mas que vão mais longe, além de nós. Que não sejam iguais a nós, que entrem na história com sua própria personalidade. E nós, que estamos vivos, devemos apoiá-los porque eles pertencem a outra geração, a outro momento histórico, a outras necessidades e outras ansiedades.
Entendemos em que país estávamos e fizemos o que podíamos. As pessoas se lembrarão de que fizemos coisas boas. O país está diferente agora. Entramos em uma Bolívia em que 60% eram pobres. Agora, 35% são pobres. É um país diferente, com expectativas diferentes, jovens diferentes, uma experiência diferente. Eles têm a Internet, têm redes; eu não tinha isso. E os jovens que agora têm entre 15 e 20 anos de idade não me conheciam. Seus pais, que eram muito pobres e não podiam comer duas vezes por dia, agora comem três vezes por dia e têm outras expectativas. O novo líder tem de entender esses jovens que estão buscando outras coisas, outra ascensão social, outros tipos de consumo.
Nos últimos tempos, as sociedades regrediram em termos da formalidade de sua população. Temos que entender os trabalhadores informais, que representam 50% da força de trabalho. A inflação os afeta. O novo progressismo terá de falar àqueles que não vivem do trabalho formal, que não têm um sindicato, que não têm uma renda fixa; àqueles jovens que não sabem o que fazíamos há 20 anos.
Se houver um retorno conservador e autoritário, teremos de lutar novamente, de baixo para cima e por todos, como fizemos antes. Mas o “todos” de hoje é diferente daquele de 20 anos atrás. São necessários líderes que entendam esse novo povo em suas ansiedades mais concretas: de imaginação, de recreação, de alimentação, de remuneração. E, em torno disso, construir lutas, resistências e mobilizações. Tenho certeza de que os neoliberais autoritários não vão resolver os problemas das pessoas. Eles não o fizeram há 20 anos e acabaram indo embora em helicópteros. O que há de diferente no livro de receitas neoliberal? Nada, eles vão gerar mais sofrimento, mais injustiça. É preciso haver líderes que tenham a capacidade de articular esse sofrimento em uma ação coletiva.
Os novos líderes devem estar lá para articular essas lutas e expectativas em um novo programa de reformas progressistas. Acredito que esta década ainda dará razão à minha hipótese de que reviravoltas autoritárias têm pé curto, como a de Bolsonaro. E isso dará margem ao surgimento de um novo projeto progressista, com novos rostos, novos discursos e novas formas de organização. A nova geração de líderes deve ter a coragem de assumir seus novos desafios, sem melancolia e sem nostalgia. Com respeito pela história, mas com audácia e criatividade suficientes para empreender a transformação do presente em direção a um futuro imaginado por eles.
E deve haver líderes que ousem fazer isso com coragem, com força. Existe uma maneira progressiva de sair da inflação e da informalidade? É claro que sim. Procurem-na, inventem-na. O que não se pode dizer é que não há alternativa. É proibido dizer isso nestes tempos.