O professor de sociologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Michel Gherman, explica que o Hamas é um
grupo de origem religiosa, criado como uma espécie de “seção palestina da irmandade muçulmana” e fortalecido como alternativa à autoridade nacional palestina, sucedendo o Fatah.
“O Hamas se consolida de um grupo de ação social em direção ao grupo militar, em direção ao grupo de ataques terroristas. Não me parece possível analisar o que acontece hoje na Faixa de Gaza e na sua relação com Israel sem passar pela questão da religião por conta do que o Hamas é.”
O pesquisador de antissemitismo da Universidade de Jerusalém comenta que o
conflito entre Israel e Palestina é historicamente produzido por “
perspectivas de nacionalismo distintas“.
“O elemento de religião está presente por conta da identidade do Hamas e também por conta de um perfil específico do atual governo de Israel.”
Para ele, a instrumentalização dos aspectos religiosos ocorre, do lado israelense, principalmente da direita sionista — com representantes fundamentalistas nos ministérios da Saúde, Segurança Pública e Economia, por exemplo, além do próprio Benjamin Netanyahu.
Do lado palestino, para ele, o Hamas utiliza também linguagens religiosas para “justificar práticas políticas e específicas“.
“Então, a gente está em uma fase onde dos dois lados desse conflito você tem grupos que sequestraram tanto a nacionalidade palestina quanto a judaica, utilizando referências de judaísmo e de islã para justificar as suas atividades.”
Ele acredita que a ideia de Jerusalém enquanto terra prometida está baseada em teorias cristãs e não judaicas.
No entanto, os setores mais fundamentalistas passaram a incorporar tais referências.
Uso político da guerra Israel-Hamas
Do ponto de vista religioso, judeus e cristãos aguardam pela volta do Messias no território de Jerusalém, segundo o pesquisador de filosofia da religião da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Sergio Dusilek. No entanto, para ele, essa discussão acaba utilizada como elemento de manipulação política.
Dusilek observa que o entendimento de que Jesus voltaria à Jerusalém e que a cidade possui um grande apelo religioso tem origem na do “pré-milenismo dispensacionalista”, que teria “vários furos e inconsistências”, apesar de muito popular.
“Então, qualquer acontecimento que esteja ligado ao Estado de Israel ou a Jerusalém, esse acontecimento dispararia, segundo essa corrente, o relógio escatológico, o relógio, vamos dizer assim, com muitas aspas, o relógio apocalíptico. Essa corrente não resiste a uma análise mais criteriosa, mas é a mais popular.”
Ele avalia que tal perspectiva é reforçada por sionistas de extrema-direita e até pelo turismo em Israel.
Para o professor, é preciso estudar o contexto do que foi escrito na Bíblia e entender que o Israel bíblico e o Estado moderno de Israel são coisas diferentes. “Está escrito lá: orai pela paz em Jerusalém. Então, [o evangélico] acha que literalmente é isso que tem que fazer.”
“Ele não questiona se aquele texto foi escrito para os judeus naquele contexto lá atrás. O que significaria isso hoje? Que deveria ser orai pelos governantes do país?”
O professor cita algumas políticas israelenses como a legalização do aborto e da maconha, ou o casamento entre pessoas do mesmo gênero, por exemplo, que são pautas criticadas por parte dos grupos religiosos ou de direita.
Doutor em ciência da religião pela UFJF, ele acredita que o fundamentalismo seja “impositivo” e impede que haja discussões.
“Ou você adentra nesta visão ou você é execrado, você sofre a perseguição inquisitorial, você é banido, você é exilado, seja lá o que for, há uma perseguição. O fundamentalismo é uma ideologia política com verniz religioso. Tem fundamentalista tibetano, tem fundamentalismo no islã, no judaísmo, no cristianismo, protestante e católico, etc.”
Qual o motivo da guerra entre Israel e Hamas?
O
grupo Hamas, que governa a Faixa de Gaza desde 2007, não reconhece Israel como Estado e reinvidica o território para a Palestina, que pede a suspensão de políticas de colonização e bloqueios na região. Resolução de 1947, da Organização das Nações Unidas (ONU), determinava a criação de dois Estados, mas apenas o judaico foi criado.
O professor Michel Gherman descreve massacres que ocorreram entre 1921 e 1929 e que tiveram como lideranças fundamentalistas islâmicos. “O Hamas é um movimento muito antissemita, desde muito antes de ele existir. Há uma tradição antissemita do islã, desconsiderada pela maioria dos grupos islâmicos, mas que na causa palestina se incorporou em momentos muito específicos.”
“Acho que seria equívoco dizer que o movimento nacional palestino é antissemita e que a ascensão do movimento nacional palestino fortalece o antissemitismo. O que eu acho que ocorre é que uma narrativa antissemita típica do Hamas tem se consolidado. Eu acho, nesse sentido, que a derrota do Hamas e o fortalecimento de um movimento nacional palestino secular, a criação de um Estado palestino ao lado de Israel, pode enfraquecer o antissemitismo.”
Ele observa que o Brasil tem se atentado mais aos conflitos no Oriente Médio, com o passar dos anos, e que as redes sociais funcionam como um espaço onde muitas opiniões são produzidas, até mesmo de forma pouco produtiva.
“Não dá para ignorar que tem um projeto de direita evangélica de construção de um apoio a Israel imaginária, uma Israel branca, religiosa, fundamentalista, ultracapitalista e ultraarmada.”
Além disso, segundo ele, setores da esquerda também se apropriam de determinados ideais do grupo Hamas, que em sua visão, não condizem com a realidade.
Por fim, ele avalia que, apesar dos ataques do Hamas terem sido extremamente violentos, não se comparam ao período do Holocausto, que matou milhões de judeus.
“Eu acho que o Holocausto tem uma gramática própria e que não se aproxima em nada do que está acontecendo em Gaza, apesar disso não significar que o que está acontecendo em Gaza não seja terrível e uma tragédia de proporções bíblicas, tal qual o que aconteceu no dia 7 de outubro também é.”
Quem ocupava Israel antes dos judeus?
Os territórios de Israel e Palestina, ao longo dos séculos, foram ocupados por diferentes grupos, impérios e nações, incluindo judeus, assírios, babilônios, persas, macedônios, romanos e bizantinos, além dos próprios árabes palestinos.
O professor Sérgio Dusilek destaca que, em várias passagens do texto da Bíblia, há referência de que havia habitação neste território.
“Essa disputa territorial sempre foi lida como uma questão de mandato divino. É como se Deus estivesse dando uma orientação para esses povos ocuparem aquele espaço. Em termos bíblicos, o judaísmo é contado na descendência de Isaac, que é o filho de Sarah, e o islamismo é contado na descendência de Ismael, que é filho de Hagar.”
Ele explica que as diferentes religiões abordam compreensões de “povos escolhidos de Deus”, o que alimenta ainda mais o “preconceito étnico-religioso“, segundo ele, já que haveria uma disputa para saber quem é o povo escolhido.
“Quando você olha a partir de Abraão, ele não teve problema nem com Isaac, nem com Ismael. Quem pediu para fazer a separação e a ruptura foi Sarah […]. Se voltassem todo mundo para Abraão, que é esse pai da fé comum aos três monoteísmos, não encontraria, na minha visão, motivo para esse ranço mútuo. Em termos bíblicos, o judaísmo é contado na descendência de Isaac, que é o filho de Sarah, e o islamismo é contado na descendência de Ismael, que é filho de Hagar.”
Desta forma, o professor ressalta o componente religioso da guerra, já que a região foi “sacralizada” por três das mais populares religiões monoteístas da humanidade — islamismo, judaísmo e cristianismo.