Jornalista André Cintra, do Portal Vermelho, observa que nenhum dos 45 antecessores de Biden – de George Washington ao próprio Trump – ousou se envolver tão diretamente numa greve trabalhista
Em sua análise sobre a mudança de rumos na politica do presidente norte americano Joe Biden, o jornalista André Cintra destaca a guinada trabalhista do velho político democrata.
Veja abaixo o texto, publicado com o título: ” Biden abraça “modo Bernie Sanders” para atrair sindicatos e isolar Trump”
Ainda é cedo para saber se a greve conjunta dos metalúrgicos da Ford, da General Motors e da Stellantis, nos Estados Unidos, será vitoriosa. Mas os trabalhadores dessas montadoras, às voltas com reivindicações legítimas, já despertaram uma atenção sem precedentes tanto do presidente Joe Biden quanto do ex-presidente Donald Trump. É cada vez mais provável que a batalha pelo coração do movimento sindical será um dos temas centrais da próxima eleição presidencial norte-americana, em 2024.
Na última terça-feira (26), Biden causou estupor ao participar de um piquete de grevistas em Michigan, a “capital nacional da indústria automobilística”. O movimento é liderado pelo UAW (United Auto Workers), que representa nacionalmente 143 mil trabalhadores do setor automotivo. Nenhum dos 45 antecessores de Biden – de George Washington ao próprio Trump – ousou se envolver tão diretamente numa greve trabalhista.
Afinal, por que o presidente protagonizou essa cena tão pioneira e inusitada?
Para chegar à Casa Branca, Biden enfrentou o senador do Estado de Vermont, Bernie Sanders, nas primárias do Partido Democrata. Seu rival se autodeclarava “socialista” – ele representava o Democratic Socialists of America (DAS) –, percorria sindicatos e apoiava greves abertamente. Nas prévias, Sanders endossou o Medicare for All (uma espécie de SUS para os Estados Unidos) e prometeu perdoar dívidas estudantis.
Embora seja mais velho que Biden, Sanders mobilizou especialmente o eleitorado mais jovem, além de estratos da classe trabalhadora. Não foi o suficiente para lhe dar a candidatura – os democratas apostaram que um nome “moderado” pudesse atrair mais adesões e impedir a reeleição de Trump. Biden, de fato, venceu a disputa em 2020 e se tornou presidente dos Estados Unidos. A maioria das bandeiras de Sanders ficou esquecida, a não ser a questão sindical.
Em 20 de setembro, quando os presidentes do Brasil e dos Estados Unidos assinaram, em Nova York, a Parceria pelos Direitos dos Trabalhadores e Trabalhadoras, Biden reforçou esse vínculo. “Não queremos que só uma classe se saia bem. Queremos que os pobres tenham oportunidades de subir na vida – e essa visão é impulsionada por uma força trabalhista forte”, afirmou, ao lado do brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva. “É por isso que meu governo tem sido chamado de o governo mais pró-sindicatos da história dos Estados Unidos.”
Não que seja uma concorrência tão complexa. Abraham Lincoln (1809-1895), o maior dos ocupantes da Casa Branca, aboliu a escravidão e promoveu a reforma agrária – mas num período pré-sindical. Theodore Roosevelt (1858-1919) chegou a declarar apoio a greves, sem, no entanto, aparecer publicamente em manifestações. Entre os democratas, Franklin D. Roosevelt (1882-1945) e Harry Truman (1884-1972) reforçaram a proteção ao trabalhador e incentivaram a sindicalização. Mas ir a uma greve e ficar lado a lado com trabalhadores, escancarando a adesão, só Biden.
E por que só agora?
Alguns motivos sobressaem. Um deles é que Biden era acusado de ser audacioso no discurso, mas retraído nas ações. Desde a posse, ele repete que “Wall Street não construiu este país (os Estados Unidos). A classe trabalhadora é que construiu este país – e os sindicatos construíram a classe trabalhadora”. O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, lembrou esta frase de Biden no último encontro que tiveram em Nova Iorque, quando ambos lançaram documento em defesa do fortalecimento dos direitos trabalhistas nos EUA, no Brasil e no mundo.
No ano passado, sua proposta para solucionar a campanha salarial dos ferroviários foi considerada, antes de tudo, autoritária. Muito embora declarasse que os 60 mil trabalhadores de empresas como Union Pacific, BNSF e Norfolk Southern mereciam valorização, Biden deixou a impressão de que apenas temia uma greve nas ferrovias e seus impactos econômicos. Os prejuízos, em caso de eventual paralisação, eram estimados em US$ 2 bilhões por dia. Agora, no caso da greve nas montadoras, Biden foi mais incisivo e evitou o ruído.
Uma segunda razão é a força-tarefa dos democratas para resgatar o legado trabalhista do partido. Esse espólio tem como referência máxima a Era Franklin D. Roosevelt (1933-1945), que foi um divisor de águas na política estadunidense. Os democratas, favoráveis à escravidão no século 19, tentaram enfrentar o abolicionismo, saíram derrotados e “perderam o chão”. Após o assassinato de Lincoln, os republicanos venceram 13 de 16 disputas à Casa Branca.
Foi somente com a eleição de Roosevelt, em 1932, e com o êxito do New Deal, a partir de 1933, que o Partido Democrata se reconectou com a classe trabalhadora. A ascensão do movimento sindical foi tão acelerada que os republicanos, ao voltarem ao comando do Congresso, aprovaram, em 1947, a nefasta Lei Taft-Hartley, uma legislação essencialmente antigrevista e anticomunista, vigente até hoje.
Mas a principal motivação de Biden é que o discurso xenofóbico de Trump – segundo o qual imigrantes têm roubado empregos dos norte-americanos – ecoou em setores da classe trabalhadora. Assim como ideias ultraliberais da extrema-direita ganharam adesão no Brasil entre trabalhadores mais precarizados, como motoristas de Uber e entregadores do iFood, o trumpismo teve milhões de simpatizantes.
Graças à pandemia de Covid-19 e à recessão, o número de postos de trabalho recuou entre o início e o fim do governo Trump – caso único na história dos Estados Unidos e uma das razões para sua não reeleição. Na prática, o lema “american first” (“primeiro, os norte-americanos”) não se concretizou. Mas as fragilidades econômicas da administração Biden levaram o ex-presidente a retomar um discurso salvacionista para os trabalhadores. Trump quer intensificar as agendas junto a trabalhadores, ainda que à margem dos sindicatos, que em geral lhe rejeitam.
Esta é a razão central que faz Biden abraçar o “modo Bernie Sanders”, posar com boné da UAW e discursar em megafone para operários do setor automotivo. A greve não é apenas por salários – mas também pelo futuro da indústria, já que veículos elétricos, uma vez dominantes, demandarão menos mão de obra. O corte de empregos nas fábricas é inevitável a longo prazo, e o movimento sindical se antecipou ao discurso.
Na mesma manhã em que o presidente foi à greve, Trump, seu provável concorrente eleitoral em 2024 postou uma provocação: “O mandato draconiano e indefensável de veículos elétricos de Joe Biden aniquilará a indústria automobilística dos EUA e custará incontáveis milhares de empregos a trabalhadores do setor automobilístico. Com Biden, não importa o quanto ganhem por hora, em três anos não haverá empregos no setor automobilístico, pois todos virão da China e de outros países. Comigo, haverá empregos e salários como você nunca viu antes”.
O movimento sindical vive uma onda de renascimento no país e pode definir, mais uma vez, a eleição presidencial. “A adesão aos sindicatos caiu muito nos EUA nas últimas décadas, mas ainda representa uma parte importante da coligação eleitoral democrata. Uma das razões pelas quais Donald Trump foi eleito em 2016 foi porque os sindicatos em estados indecisos, como a Pensilvânia, votaram nele”, lembrou Rana Foroohar, na semana passada, no Financial Times. Ao que tudo indica, o “modo Bernie Sanders” veio para ficar – ao menos até a eleição.
Com informações do Portal Vermelho