Amazônia Legal tem 31 Terras Indígenas com processos de demarcação em diferentes estágios. Destas, 21 aguardam demarcação física e outras 10, a publicação de portaria no Diário Oficial da União. Em dezembro, o Grupo de Trabalho Povos Indígenas recomendou que o novo governo homologasse cinco TIs que estão sem pendências ainda no primeiro mês do governo. Seria uma forma de transmitir uma clara guinada de rota – em quatro anos, o governo Bolsonaro não demarcou um centímetro de terra e deixou povos indígenas ainda mais ameaçados ou vulneráveis. Mas, depois de 100 dias, Lula ainda não usou sua caneta em favor das demarcações.
Manaus (AM) – Há mais de 20 anos aguardando a homologação dos seus territórios, os povos de Terras Indígenas (TIs) da Amazônia vivem em constante estado de alerta e temem por sua segurança. A morosidade no processo de demarcação deixou marcas profundas na história dessas populações, que enfrentam a invasão deliberada de garimpeiros, extrativistas, madeireiros, caçadores, posseiros, fazendeiros e pescadores ilegais em suas terras. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e o Ministério da Justiça são os principais responsáveis pelo processo, além da assinatura do presidente da República.
Os processos de demarcação de TIs foram completamente paralisados durante os quatro anos do governo Jair Bolsonaro (PL), uma promessa de campanha que se cumpriu às custas da vulnerabilização de quem vive em cinco TIs da Amazônia Legal, cujas lideranças foram ouvidas pela Amazônia Real. São seus povos que agora estão a espera da assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), última etapa para concluir o processo de demarcação: TI Cacique Fontoura, do povo Karajá, localizada entre os municípios de Luciara e São Félix do Araguaia, no Mato Grosso; TI Arara do Rio Amônia, do povo Apolima-Arara, em Marechal Thaumaturgo, no Acre; TI Rio Gregório, dos povos Katukina Pano e Yawanawa, em Tarauacá, também no Acre; e a TI Uneiuxi, dos povos Isolados do Igarapé do Natal e Nadöb, em Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas.
Essas cinco TIs foram incluídas no relatório do Grupo de Trabalho (GT) Povos Indígenas, entregue em 12 de dezembro de 2022 ao presidente Lula. Na época, as lideranças indígenas recomendaram as homologações de 13 territórios no país e que o decreto fosse assinado no primeiro mês do novo governo, o que não aconteceu. No relatório, a TI que aguarda há mais tempo a homologação é Acapuri de Cima, em Fonte Boa, no Amazonas, que teve processo iniciado em 1991 e seus limites físicos declarados em 2000. O povo Kokama aguarda até hoje. O processo mais recente é da TI Rio Gregório, no Acre, que teve os estudos iniciados em 2006.
O documento apontou outras 66 TIs, sendo 31 na Amazônia Legal, que estão com processos de demarcação menos avançados. Destas, 21 aguardam demarcação física e 10 a publicação da portaria do Ministério da Justiça no Diário Oficial da União. Uma TI só pode ser demarcada depois de passar por cinco fases que incluem: estudo, delimitação, declaração, homologação e regularização.
De acordo com o antropólogo e conselheiro da Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre), Terri Vale de Aquino, o governo tem a obrigação de retomar a demarcação das TIs, além de retomar os processos que estão paralisados e judicializados. “Precisa com prioridade demarcar, pois traz essa segurança jurídica e tranquilidade para os povos indígenas, que são alvos de ataques e disputas por terras, há muitos conflitos fundiários. A homologação é mais um reconhecimento”, disse.
Durante um discurso feito na 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, em Roraima, no dia 13 de março, o presidente Lula prometeu acelerar a demarcação de terras indígenas. “Eu tenho pedido para a Funai e para o Ministério [dos Povos Indígenas] me apresentarem todas as terras que estejam prontas para serem demarcadas, porque a gente precisa demarcá-las logo antes que as pessoas se apoderem delas. Então, nós precisamos rapidamente tentar legalizar todas as terras que já estão quase que prontos os estudos, para que os indígenas possam ocupar o território que é deles para poder aumentar sua capacidade de produção”, afirmou Lula.
Situada no município de Marechal Thaumaturgo, no Acre, a TI Arara do Rio Amônia foi impactada socioambientalmente ao longo dos anos pela alteração no regime tradicional de uso e ocupação, falta de regularidade na demarcação do território tradicional e por invasão e dano a área protegida. Segundo dados do Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (Siasi) da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), publicados em 2014, a população dos Apolima-Arara era de 434 pessoas somente no Acre.
Desde 2003, eles aguardam a homologação de suas terras, que foi identificada pela Funai como território tradicional da etnia Apolima-Arara. Entretanto, a existência de uma reserva extrativista (Resex) e um assentamento com cerca de 260 famílias turvou a relação entre os indígenas e os ocupantes. Segundo dados do Incra, o Projeto de Assentamento Amônia possui 26 mil hectares, sendo que boa parte não está cumprindo a função de regularização fundiária, mas destinada ao Parque Nacional da Serra do Divisor. A outra parte, pertencente ao Exército, está destinada à construção de um quartel para o pelotão de fronteira. No entanto, segundo informações do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), não há nenhum pronunciamento oficial do Exército sobre o assunto, tampouco indícios de que o quartel venha mesmo a ser construído.
Desde 1999, quando os Apolima-Arara resolveram se mostrar à sociedade não-indígena e reivindicar os seus direitos, esse povo luta pelo reconhecimento étnico e pela conquista de sua terra. “Os brancos vão e vem, porque a terra não é homologada. O mandato do Bolsonaro deixou as coisas ‘à vontade’, a Funai não podia atuar na fiscalização, então os brancos ficaram como eles queriam ficar, fazendo o que eles queriam”, denuncia o cacique Francisco Arara.
Francisco afirma que, de 2013 a 2017, foi aprovado o levantamento inicial das benfeitorias a serem indenizadas às famílias assentadas na área e que seriam reassentadas. O levantamento fundiário dos posseiros que viviam na TI e foram considerados de boa fé demorou, revela Francisco, pela resistência de algumas famílias. “Aos poucos os pagamentos foram realizados e as pessoas se manifestaram. Esse processo durou quase 5 anos e em 2017 encerrou, mas todos aqueles que eram considerados de boa fé, tiveram os valores de indenização depositados em juízo porque eles não queriam o pagamento por livre e espontânea vontade”, diz.
Algumas famílias insistiram em não receber o pagamento pelo reassentamento, e permanecem na TI até hoje. “Eles não saíram da TI, e essas pessoas têm familiares que moram na cidade de Marechal Thaumaturgo, outros são ribeirinhos e moram abaixo da TI e são familiares deles. A convite, eles familiares deles entram na TI para caçar, para tirar madeira e para pescar. Eles têm trânsito livre e nenhuma fiscalização”, afirma o cacique.
O povo Apolima-Arara sofre ainda com a invasão do narcotráfico no território, que faz fronteira com o Peru. As rotas abertas pelos narcotraficantes dentro da área têm preocupado o cacique Francisco, que denuncia o medo sentido pelo contato próximo. “Pessoas envolvidas com facção estão por todos os lugares, é muito perigoso e nós tememos”, diz. Por tentar combater por conta própria a passagem de pessoas envolvidas com o narcotráfico, os Apolima-Arara já foram até ameaçados de morte.
Francisco acredita que o sucateamento das instituições como a Funai e a Sesai contribuíram para a expansão dos atuais conflitos na TI Arara do Rio Amônia. “Para combater esse tipo de ilegalidade na TI, precisamos de uma Funai forte para trabalhar. Isso tudo foi sucateado, ficaram pessoas de figuração nos cargos importantes e para exercer a constituição infelizmente não aconteceu”, explicou, demandando também a participação da Polícia Federal e do Exército na proteção dos povos indígenas.
Vulnerável ao garimpo e ao narcotráfico, a TI Uneiuxi, localizada na região do médio Rio Negro, no município de Santa Isabel do Rio Negro, no Amazonas, aguarda o reconhecimento final do Estado brasileiro sobre a terra ancestral, onde vivem o povo Nadöb e os Isolados do Igarapé do Natal. O diretor-presidente da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), Marivelton Baré, explica que perto do território estão balsas de garimpo que exploram minério ilegalmente no rio Japurá. Os indígenas também estão na rota de facções que fazem o contrabando de drogas da Bolívia para o Brasil, fato que gera preocupação a comunidade.
“Enquanto a homologação não sai, a comunidade vive de ameaças por conta da rota do narcotráfico que passa ali em frente a Santa Isabel, isso tem preocupado bastante quem vive ali”, afirma Marivelton.
A TI Uneixui foi uma área que já teve exploração mineral e muitos garimpeiros foram retirados durante o processo de demarcação, que, segundo Marivelton, não foi nada fácil “A nossa luta para poder garantir as etapas do processo de demarcação e os direitos territoriais foi dura e movida pela vontade de ocupar o que é nosso por direito.”
A falta de fiscalização e de monitoramento afetou, inclusive, uma iniciativa de projeto de turismo de base comunitária desenvolvida durante os meses de setembro a dezembro, mas que está cada vez mais ameaçada pelo alto risco com a proximidade da rota do narcotráfico. Marivelton lembra que nenhuma das denúncias feitas pelos povos da TI Uneiuxi tiveram resposta: “Nem sequer têm uma fiscalização permanente ou operação no território”, lamenta a liderança.
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Os indígenas Karajá aguardam a homologação da TI Cacique Fontoura, em São Félix do Araguaia, Mato Grosso, desde 2001. “A grande expectativa é o nosso retorno para o território, onde o meu povo e, especificamente, as famílias que residiam e vão residir na TI, vão fazer parte daquele contexto familiar de retomada para dentro desse território que guarda a nossa história”, explica Rafaella Coxini Karajá, filha do cacique Daniel Coxini, que hoje administra as questões relacionadas aos Karajá no lugar de seu pai.
Segundo Rafaella, o processo de demarcação da TI Cacique Fontoura, apesar de aparentemente tranquilo, ocasionou em conflitos com fazendeiros que compraram terras depois da demarcação física do território. Os fazendeiros chegaram a proibir a entrada dos indígenas, que mesmo não morando no local, o usavam para colher madeira para a construção de habitações em outros territórios. “Eles proibiram a nossa entrada e chegaram a nos ameaçar com a instalação de cercas elétricas no território. Apesar disso, nunca tivemos atritos físicos”, afirma. A TI também teve casos de retirada de madeira ilegal e de areia para construção de estruturas de não-indígenas.
Por questão de segurança, os Karajá da família Coxini decidiram não residir no local enquanto a homologação não sai. “Muitas pessoas que vão residir lá são pessoas idosas, e a gente tem uma grande preocupação dessas pessoas estarem lá dentro porque a gente nunca sabe o que pode acontecer porque o território abrange fazendas”, relata.
A necessidade de ações que fortaleçam a homologação das terras e a proteção das populações vão além da demarcação física e desintrusão de invasores. O antropólogo Terri Vale de Aquino afirma que deve ser prioridade do Estado demarcar e trazer segurança jurídica e tranquilidade para os povos indígenas. “(Eles) são alvos de ataques e disputas por terras, há muitos conflitos fundiários. A homologação é mais um reconhecimento”, explica.
O cacique Francisco cobra, além da demarcação, o fortalecimento do controle e fiscalização na TI e a proteção da população indígena, principalmente as lideranças que tentam impedir a passagem de traficantes de drogas por dentro do território e são ameaçadas de morte. “Acreditamos que para combater o narcotráfico, extração ilegal de madeira, caça predatória e a entrada de pessoas estranhas na TI, é necessário que se crie uma base permanente com a presença do poder público federal, no sentido de combater as invasões”, afirmou.
Os Apolima-Arara querem ainda que o Estado invista no fortalecimento de seu desenvolvimento econômico e sustentável, garantindo ao povo indígena segurança alimentar por meio da produção de artesanatos. “Queremos fortalecer a cultura tradicional do povo indígena Apolima-Arara, principalmente a nossa língua e nossos artesanatos”, diz Francisco.
Marivelton Baré defende que além da demarcação, os indígenas da TI Uneiuxi precisam que haja a conclusão dos planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTA), instrumento da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas (Pngati), que serve para colocar em prática o planejamento do uso do solo. “A gente precisa que a Pngati seja efetivada como política pública que vai garantir que as comunidades possam estar a par de todos os processos, com suas diretrizes culturais, ambientais e econômicas”, diz.
No dia 3 de abril, o governo federal encaminhou ao Congresso uma medida provisória que abre um crédito extraordinário de 640 milhões de reais, sendo ao menos 498 milhões para atender e proteger a população indígena. Desse montante, 146,7 milhões de reais são destinados para o Ministério dos Povos Indígenas, especificamente para a Funai. Segundo a medida provisória, os recursos atenderão a uma ação programática de “regularização, demarcação e fiscalização de Terras Indígenas e Proteção dos Povos Indígenas Isolados”.
A criação do Ministério dos Povos Indígenas e a nova presidência da Funai, ambos comandados por mulheres indígenas, respectivamente Sônia Guajajara (Psol) e Joênia Wapichana (Rede), representaram um momento de esperança para os povos indígenas brasileiros. A expectativa para as homologações de TIs na Amazônia só aumentou com a chegada de Lula ao poder. “Apostamos, votamos e apoiamos com toda a confiança o presidente Lula. Nós depositamos nosso voto de confiança nele para homologar nossa terra”, conta o cacique Francisco Arara.
Francisco afirma ainda que os Apolima-Arara não perderam a esperança de que a terra seja homologada pelo presidente Lula ainda neste mês, e que o presidente “tem muito tempo para trabalhar”, já que ainda não fez “o que gostaria” em relação às homologações. “Apostamos que até abril nós possamos ter nossa terra e outras Tis homologadas. Estamos confiantes e esperançosos para que todas as terras indígenas sejam demarcadas e homologadas de acordo com o que garante a Constituição, e esperamos que no mandato do presidente Lula, isso aconteça”, declara.
Rafaella Coxini Karajá diz estar aguardando a homologação da TI Cacique Fontoura com muita alegria ao lado da família. “Queremos retornar para lá e levar meu pai para terminar o ciclo de vida dele dentro do local que cresceu. Estamos muito alegres e com muitas expectativas, temos muitos planos para quando voltarmos para a nossa casa real”, diz.
A retomada dos Karajá para o território inclui o início dos projetos de roça, piscicultura e reflorestamento, “para suprir o que foi retirado ilegalmente e manter o território intacto e preservado”, segundo Rafaella. Plantações de banana, arroz e mandioca serão feitas para garantir a subsistência alimentar das famílias que irão retornar.
A demarcação da TI Cacique Fontoura tem importância histórica, segundo Rafaealla, pelo fato de os Coxini terem vindo daquele lugar, onde seus antepassados viveram e onde ocorriam os rituais tradicionais. “Ali tem uma importância muito grande dentro da nossa cultura, retomar um espaço originário daquele povo”, conta. A questão da preservação e manutenção da natureza e dos lagos da TI afeta diretamente a alimentação e a geração de trabalho e renda para os indígenas, por isso é uma prioridade para os Karajá que vão viver na TI Cacique Fontoura.
“A proteção da terra, a alimentação das pessoas, e a geração de trabalho e renda para nossas comunidades e famílias é uma prioridade além da homologação de fato”, afirma a liderança.
Em março de 2022, a Justiça Federal, atendendo a um pedido do Ministério Público Federal, chegou a determinar que a União promovesse a edição do decreto de homologação da demarcação da TI Cacique Fontoura. o procurador da República em Barra do Garças (MT) Everton Pereira Aguiar Araújo, afirmou na época que ficou “demonstrada a deficiência e/ou inércia do Estado em garantir os direitos assegurados pelo constituinte às comunidades indígenas”. Até agora, a TI segue sem homologação.
Procurados pela reportagem, a Funai e o Ministério dos Povos Indígenas não responderam aos questionamentos sobre a conclusão dos processos de homologações das TIs.
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