Boa Vista (RR) – A promessa do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de acabar com o garimpo ilegal em terras indígenas enfrentará seu maior desafio em Roraima. Na TI Yanomami, garimpeiros dão sinais de que vão resistir e insistir nas ameaças e expulsão dos indígenas. Novembro já havia registrado pelo menos três casos de agressões e maus-tratos a yanomami que vivem nas ruas da capital Boa Vista. Em 6 de dezembro, garimpeiros incendiaram a Unidade Básica de Saúde Indígena do Homoxi, localizada no município de Mucajaí. A unidade estava desativada desde setembro de 2021, depois que os invasores ameaçaram os profissionais de saúde.
Depois da saída da equipe médica, a pista de pouso, antes usada para deslocar em aeronaves os doentes da TI, passou a ser ocupada por 15 aeronaves do garimpo ilegal. Um jovem de 25 anos chegou a ser atropelado por um avião pilotado por um garimpeiro. O caso foi denunciado ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal. O posto de saúde de Homoxi servia para atender 615 indígenas que vivem nas comunidades da região e hoje estão sem assistência.
A Urihi Associação Yanomami divulgou fotos do incêndio da Unidade Básica de Saúde Indígena do Homoxi. Outra associação dos yanomami, a Hutukara, também repudiou a ação criminosa, que teria ocorrido “como forma de retaliação contra a operação da Polícia Federal e Ibama”, informaram em nota as duas entidades.
“Há quatro anos nossos parentes estão sofrendo, sem assistência, doentes, crianças desnutridas. Isso é reflexo do governo (de Jair) Bolsonaro. Nossos direitos foram violados e estamos reféns dos garimpeiros”, afirmou Júnior Hekurari Yanomami, hoje presidente da Urihi.
Para tentar tirar o foco da denúncia da Urihi e da Hutukara, garimpeiros divulgaram um vídeo em que nove indígenas (entre eles, três homens armados com espingardas e duas crianças) aparecem em frente ao posto destruído pelo fogo. O suposto líder do grupo afirma que a unidade de atendimento foi queimada por policiais durante uma operação.
O indígena que presta apoio aos garimpeiros na gravação não faz parte da comunidade Homoxi, segundo Hekurari. “Ele é de uma comunidade que fica há dois dias a pé, esse vídeo foi manipulado”, denunciou.
O Ibama informou em nota que as denúncias são falsas e repudiou ato ou ataque contra seus servidores. A PF disse não ter participado de atividades na TI Yanomami. A operação Guardiões do Bioma iniciou em julho de 2021 e ainda está em curso.
A onda de invasões de garimpeiros que ameaçam os Yanomami atinge, com maior violência, as crianças. Fotos de crianças desnutridas foram divulgadas pela Urihi em 5 de dezembro, feitos dois dias antes na comunidade Kataroa, região do Surucucu, município de Alto Alegre.
“As equipes não conseguem chegar para atender nossos parentes, porque os garimpeiros estão lá ocupando e ameaçando”, denunciou Ivo Cípo Aureliano, advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR). “O sistema de saúde indígena faliu. Está acontecendo um verdadeiro genocídio do povo Yanomami. Falta medicamentos nos postos de saúde na TI-Y, cerca de 10 mil crianças ficaram sem remédios para tratar malária, desnutrição, verme, porque a água está contaminada e eles não estão tendo alimentação adequada.”
Ataques se intensificam Grupo de yanomami nas rua de Boa Vista (Foto de Felipe Medeiros/Amazônia Real)
Só no mês passado a equipe da Amazônia Real registrou pelo menos três ocorrências envolvendo indígenas agredidos e sofrendo maus tratos na capital roraimense. Em uma foto divulgada nas redes sociais no dia 25 de novembro, um homem aparece com a cabeça enfaixada. O yanomami pertence a um grupo da TI Ajarani, nos municípios de Iracema e Caracaraí, no sul do estado, informou o CIR. Ele e outras sete pessoas (seis homens e uma mulher) passaram a viver na rua, mais precisamente na calçada da avenida Glaycon de Paixa no bairro Mecejana, zona oeste de Boa Vista, próxima à Feira do Produtor e do local onde aconteceu o assassinato brutal de uma mulher yanomami de 35 anos com dois tiros na cabeça na noite de 11 de novembro.
A prefeitura de Boa Vista informou que o indígena recebeu socos de outros indígenas. O homem foi atendido no próprio veículo e depois liberado. Segundo testemunhas, a Polícia Militar não foi acionada.
“É lamentável que o poder público até agora não conseguiu garantir a proteção da Terra Indígena yanomami que sofre com várias invasões causando muitos impactos negativos, como a introdução de elementos estranhos da cultura yanomami e a falta de assistência como atendimentos de saúde que não conseguem ser levados às comunidades. Isso causa um impacto grande para este povo que se desloca para a cidade, fica nas ruas, se vicia em álcool e se coloca em inúmeros riscos”, avaliou Ivo Aureliano.
Em 19 de novembro, a reportagem registrou um outro grupo de indígenas (seis homens e uma mulher) na avenida Venezuela, bairro Mecejana, na zona oeste da capital, exatamente no local do assassinato da yanomami. Eles informaram ser da Missão Catrimani (Caracaraí) e que não tinham sido comunicados sobre o crime envolvendo uma de seu povo. Disseram estar acompanhando uma criança doente que precisou ser levada às pressas para o Hospital Infantil, na capital roraimense.
Uma fotografia, obtida com exclusividade pela agência Amazônia Real , mostra a mulher indígena dormindo nua em cima de um pedaço de papelão ao lado de um carro erguido na beira da calçada de uma oficina localizada na alameda das Papoulas, bairro Pricumã, na zona oeste de Boa Vista, a duas quadras da Feira do Produtor.
É possível ver na imagem sangue nos pés da mulher. Testemunhas ouvidas pelo CIR afirmam que ela foi maltratada pelos funcionários da oficina na manhã de 16 de novembro, no local onde dormia. “Eles a empurraram com os pés para que saísse da calçada”, diz a liderança que pediu para não ser identificada com medo de perseguição.
Procurado, o dono da oficina negou qualquer tratamento de maus tratos à indígena. “Vimos ela ferida e a deixamos descansar. Ligamos para a Funai nos números que nos disponibilizaram, mas não fomos atendidos”, informou Ronald King. Ainda conforme o empresário, a Polícia Militar e o Samu (serviço de ambulância) foram ao local. A yanomami foi levada pela equipe de atendimento médico. Mas, conforme as secretarias de comunicação do governo e da prefeitura de Boa Vista, não há registros de atendimentos relacionados a essa ocorrência.
O CIR não sabe o paradeiro da indígena e a Funai não respondeu à reportagem. No estado com a maior população indígena per capita do país, não há assessoria de comunicação. O atendimento é centralizado em Brasília e feito somente por e-mail, a maioria das vezes sem respostas.
Perseguição na capital Protesto contra a destruição do território (Foto Hutukara)
A violência contra os indígenas Yanomami em Boa Vista tem sido constante. Em 11 de novembro, um grupo estava acampado na avenida Venezuela próximo a Feira do Produtor, no bairro São Vicente, na zona sul da capital, quando dois homens em uma bicicleta passaram pelos indígenas atirando. A mulher de 35 anos, mãe de um bebê, morreu após ser atingida por dois disparos de arma de fogo na cabeça. A reportagem descobriu que outros dois yanomami foram atingidos pelos tiros e não apenas um como divulgado anteriormente. Os dois homens, não identificados, seguem internados no HGR e não correm risco de morte.
Na época, a Hutukara Associação Yanomami (HAY) classificou o ataque que matou a indígena como “crime de ódio”. Não há ainda uma conclusão da investigação da polícia. Enquanto isso, a migração de povos da aldeia Xexena aumenta na cidade.
O CIR enviou um ofício às autoridades locais ,cobrando celeridade na conclusão da investigação do assassinato. O documento foi encaminhado à Polícia Federal, ao Ministério Público Federal e ao Grupo de Atuação Especial de Minorias e Direitos Humanos (GAEMI-DH) do Ministério Público de Roraima (MPRR).
Até o momento, não há pistas dos criminosos. A administração da feira entregou imagens do circuito interno de segurança à Polícia Civil. O caso está sob responsabilidade da Delegacia-Geral de Homicídios.
O MPRR e o MPF informaram à reportagem que atuarão no processo, assim que o trabalho de investigação for concluído e o inquérito for entregue aos órgãos. A PF e a Funai não responderam.
Consequência do garimpo
Para o Conselho Indígena de Roraima, o povo yanomami é expulso da terra indígena por conta do garimpo ilegal. São mais de 20 mil homens, que invadiram o território, para explorar ouro e cassiterita na região que faz fronteira com a Venezuela. “Eles são forçados a sair. Os que não são cooptados para o crime da mineração, fogem para Boa Vista para não morrer, por isso está aumentando o número de indígenas na capital nessas condições [vulneráveis]”, informou o coordenador do CIR, Edinho de Souza, da etnia macuxi.
O grupo yanomami atacado em Boa Vista pertence à região do Ajarani, no sul de Roraima. Há muitos anos, pessoas dessa região, principalmente da aldeia Xexena, localizada ao leste da TI Yanomami, se deslocam do território para cidades como Caracaraí, Mucajaí e Boa Vista. O motivo são os impactos que sofreram pelo contato com não-índios em 1970, durante a construção da perimetral Norte (BR-210), “que avançou mais de 100 quilômetros pelas terras tradicionais do povo”.
Uma casa de passagem poderia ser uma opção para evitar que grupos da aldeia Xexena fiquem vulneráveis nas ruas. Mas Edinho discorda: “A solução é os garimpeiros saírem da terra dos nossos parentes. Um local que abrigasse os yanomami aqui em Boa Vista seria ainda mais problemático, aumentaria a vinda deles para a capital e até a perda da cultura, dando mais espaço para o crime ambiental que acontece em Roraima”.
O garimpo é o ponto central dos inúmeros problemas envolvendo indígenas, conforme o CIR. “Tudo é culpa do garimpo, os parentes não vão ficar lá enquanto os invasores estiverem, por isso eles estão vindo para a zona urbana. Pedimos justiça para esses crimes. O estado está omisso”, criticou a liderança.
O governo de Roraima informou que a responsabilidade com os povos originários é da Funai. O CIR critica a ausência da Fundação na atuação no estado. “A pessoa que está à frente não tem competência técnica para assumir a pasta. Ele [Marcelo Augusto Xavier da Silva] é um militar ligado ao agro. Como uma pessoa dessa vai cuidar dos nossos parentes?”, questionou Edinho.
Garimpo ilegal no rio Uraricoera na Terra Indígena Yanomami, em Roraima (Foto: Bruno Kelly/HAY)
Gostou dessa reportagem? Apoie o jornalismo da Amazônia Real aqui.