Agora ela diz respeito à preservação da natureza e o direito à alimentação saudável. Por isso envolve as transnacionais do Agro e o sequestro de dados da natureza pelas Big Techs. Tornou-se uma batalha cultural que une trabalhadores urbanos e do campo pelo futuro do planeta
O futuro da luta pela terra no Brasil
As características do novo Programa Agrário do MST são dadas pelas próprias contradições e exigências da luta no campo. Elas nos dão a dimensão de qual direção a luta pela terra deve seguir, não apenas no Brasil, mas em todo Sul Global. Destacamos aqui algumas destas dimensões e desafios.
A luta pela terra é cada vez mais internacional. A alta concentração de renda e de terras provocada pelo capital financeiro, reduziu o controle de toda cadeia produtiva agrícola em apenas 87 corporações com sede em 30 países1. Estas corporações transnacionais ameaçam a biodiversidade e a cultura local com as exigências de padronização dos alimentos, determinam preços globalmente e interferem em legislações e direitos nacionais. Isso significa que a resistência camponesa também precisará ser cada vez mais internacional, com plataformas e ações conjuntas, com pressões sobre organismos multilaterais, mas principalmente combatendo estas transnacionais em todos os territórios.
A luta pela terra é uma luta tecnológica. O agronegócio define-se também pela difusão massiva de transgênicos e do uso intensivo de agrotóxicos. Estas características são inerentes ao próprio agronegócio. Sem este pacote tecnológico, não é possível produzir monocultura em escalas globais. Por isso mesmo, o agronegócio “verde ou sustentável” é apenas publicidade. A superação deste modelo exige o fortalecimento e a massificação das experiências de agroecologia, recuperação dos solos e biodiversidade, apropriação e difusão de novas técnicas e tecnologias de produção e preservação ambiental, produção de máquinas, equipamentos e ferramentas agrícolas adequadas às necessidades dos camponeses.
E ela não é tecnológica apenas na produção agrícola. As fusões e a concentração características dos movimentos do capital financeiro têm aproximado empresas de tecnologia, financeiras tecnológicas e empresas do agronegócio, como descrevemos no Dossiê n.º 462 – Big Techs e a luta de classes, para determinar o padrão tecnológico de maquinário e se apropriar de milhares de dados da natureza, “aprisionados” na infraestrutura em nuvem controlada pelo Norte Global.
A luta pela terra é uma luta pela alimentação. A pandemia da covid-19 demonstrou como as corporações transnacionais aproveitaram a crise global para inflacionar o preço dos alimentos e lucrar com a especulação. Mas submeter os alimentos à lógica do mercado financeiro tem ainda outras consequências, como reduzir a produção de culturas tradicionais ou locais por commodities com maior aceitação no mercado. Culturas como a soja, cujo destino é a produção de combustível ou alimentação animal3, transformam antigas plantações de alimentos em desertos de monocultura. Além dos riscos de gerar crises alimentares a partir do comprometimento de safras futuras nas Bolsas de Valores. Ainda assim, quando o agronegócio não reduz a produção ou dificulta o acesso aos alimentos, está produzindo comida de má qualidade, rica em resíduos de agrotóxicos.
A luta pela terra é uma luta ambiental. O agronegócio é um dos responsáveis pela catástrofe climática e ambiental, principalmente pelo desmatamento em larga escala para substituição de florestas para o plantio de commodities ou para pecuária extensiva, sendo esta também emissora de grandes quantidades de carbono. Além disso, o modelo de expansão do agronegócio implica em consumo excessivo e desregulamentado dos recursos hídricos, desaparecimento de variedades de plantas e sementes tradicionais, impactos ambientais imediatos, como a redução da biodiversidade do solo, entre outros.
A combinação da luta pela terra com a luta ambiental também exige a denúncia das falsas soluções do capitalismo verde como o mercado de crédito de carbono. Neste contexto, uma das iniciativas com efeito prático e imediato com dimensão nacional é a meta de plantar 100 milhões de árvores nos próximos anos. Em seus primeiros quatro anos, 25 milhões de árvores já foram plantadas pelo Movimento.
Um bom exemplo de como o MST combina as lutas ambientais, tecnológicas e alimentar está na organização das famílias assentadas da região metropolitana de Porto Alegre, no sul do país. Trata-se da maior produção de arroz agroecológico da América Latina. São mais de mil famílias que produzem individualmente ou em cooperativas locais, mas todas organizadas em uma cooperativa central – que fornece assistência técnica e assume a agroindustrialização e a comercialização do produto. As famílias participam tanto na gestão técnica, responsáveis pela supervisão e certificação agroecológica, como na gestão econômica e política. A produção do arroz orgânico se tornou símbolo da capacidade produtiva em larga escala da agroecologia, do compromisso do MST com a alimentação saudável e também da solidariedade, uma vez que grandes quantidades dos grãos são doadas frequentemente tanto para cozinhas comunitárias urbanas na região quanto para outros países.
A luta pela terra é uma batalha cultural. A consolidação da hegemonia do agronegócio não se dá apenas pelo controle econômico e tecnológico, mas pela difusão de valores neoliberais e da defesa do “modo de vida” do agronegócio por inúmeros mecanismos da indústria cultural, com constante publicidade na televisão, patrocínio e financiamento de veículos de comunicação, organização de shows e financiamento de artistas que – literalmente – cantam odes ao latifúndio monocultor. A construção de um modelo contra-hegemônico de agricultura implica em transformações no modo de produção agrícola e das próprias relações sociais no campo – com a agroecologia, a cooperação e o estudo como oposto à monocultura, o individualismo e a ignorância.
Por outro lado, a agroecologia também se tornou uma parceira para passar a mensagem de uma outra proposta de modelo agrícola, ao trazer a questão ambiental, de saúde, o saber popular e científico e a diversidade da cultura popular. O Coletivo de Cultura do MST é um exemplo de como isso pode se desenvolver. Este Coletivo trabalha para produzir e fortalecer uma cultura própria, a partir de frentes de trabalho na literatura, teatro, artes plásticas, e tem cumprido um papel importante na relação com a sociedade com a organização dos Festivais da Reforma Agrária nos estados, um misto de feira de alimentos com atividades culturais com músicos do MST e apoiadores da luta, reproduzindo localmente a experiência bem sucedida das Feiras Nacionais da Reforma Agrária, realizadas em São Paulo, cuja edição mais recente, em 2023, reuniu mais de 320 mil pessoas ao longo do evento.
Finalmente, a luta pela terra é parte e depende do conjunto da luta dos trabalhadores. Os camponeses, sozinhos, não possuem forças suficientes para enfrentar as grandes corporações transnacionais que controlam a agricultura. Para derrotá-las, é preciso um poderoso movimento de massas; além do mais, as derrotas destas corporações e do capital financeiro abririam janelas de oportunidades para um projeto socialista. Ou seja, uma vez em que o estágio atual do capitalismo eleva suas características em suas máximas potências, cada derrota infligida a este modelo deve e pode ser necessariamente anticapitalista e, portanto, contribuindo, desde as áreas rurais ou em aliança com os trabalhadores urbanos, com a construção de um projeto de emancipação humana.
Referências bibliográficas
COMISSÃO PASTORAL DA TERRA. Conflitos no campo Brasil 2022. Goiânia, CPT Nacional, 2023.
DIEESE. Estatísticas do meio rural 2010-2011. 4.ed. / Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos; Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural; Ministério do Desenvolvimento Agrário. — São Paulo: DIEESE; NEAD; MDA, 2011.
INSTITUTO TRICONTINENTAL DE PESQUISA SOCIAL. Dossiê n.54. Gramsci em Meio ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST): Uma Entrevista com Neuri Rossetto. Julho de 2022.
______.Dossiê n.46. Big Techs e os desafios atuais para a luta de classes. Novembro de 2021.
MAESTRI, Mario. A Aldeia ausente: índios, caboclos, cativos, moradores e imigrante na formação da classe camponesa brasileira. In: STEDILE, João Pedro. A questão agrária no Brasil, volume 2 – O debate na esquerda 1960-1980. São Paulo, Expressão Popular, 2005. p. 217-276.
MARTINS, Adalberto. A Questão Agrária no Brasil: da colônia ao governo Bolsonaro. São Paulo, Expressão Popular, 2020.
______.A produção ecológica de arroz e a reforma agrária popular. São Paulo, Expressão Popular, 2019.
MST. Programa de Reforma Agrária Popular. 2024.
______.Normas gerais e Princípios Organizativos. 2016.
1https://www.brasildefato.com.br/2018/09/04/so-87-empresas-controlam-a-cadeia-produtiva-do-agronegocio/
2https://thetricontinental.org/pt-pt/dossier-46-big-tech/
3https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/complexo-da-soja-analise-dos-dados-nacionais-e-internacionais/
Esta é a terceira de três partes do Dossiê Tricontinental sobre a organização política do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, o MST. Confira a primeira aqui e a segunda aqui