Em 1970, vitória esmagadora da ditadura
Naquele cenário, o primeiro teste do sistema com dois partidos foram as eleições de 1970, que eram um aceno a uma suposta retomada das regras democráticas, ainda que de fachada.De fachada porque, segundo o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos, aquelas eleições transcorreram “em clima de intimidação generalizada, quando o braço repressivo do sistema estava criando fortes raízes na maquinaria governamental, face à luta que então desenvolvia contra ousados grupos de guerrilheiros urbanos”, cujo ápice, acrescentou, se deu entre 1969 e 1972.Esse período foi inaugurado pela edição do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, considerado um marco da radicalização da ditadura, fechando o Congresso por quase um ano.
Pior que as medidas institucionais, o AI-5 autorizava o governo a usar os meios necessários para assegurar “a ordem e a tranquilidade para realizar os propósitos” do golpe de 1964. A repressão, desenvolvida nos chamados “porões da ditadura”, perseguiu os opositores indistintamente e não só os grupos que defendiam a luta armada.Durante toda a ditadura, marcadamente a partir de dezembro de 1968, o desaparecimento, a tortura e a morte foram praticados contra militantes de esquerda ou quem fosse considerado “subversivo” pela ditadura militar. Nos 20 anos daquele regime, mais de 50 mil pessoas foram presas, mais de sete mil foram indiciadas por crimes políticos e quase cinco mil tiveram seus direitos políticos cassados. O Estado brasileiro iniciou o reconhecimento das violações de direitos humanos pela ditadura somente após 1985, já no governo Sarney.
A ditadura matou mais de mil camponeses e outras 475 pessoas foram mortas ou são consideradas desaparecidas, conforme dossiê publicado pela Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos.As eleições de 1970 se realizaram nesse clima, com a oposição à ditadura dividida entre a participação e o boicote às urnas, seja pela abstenção, seja pelo voto nulo.— Foi uma maluquice atrás da outra, a partir do Ato Institucional número dois, depois o três, o quatro, o cinco… até que culminou com o Congresso fechado. Ficamos num caos — afirmou o ex-senador Pedro Simon, em entrevista à Agência Senado em 18 de outubro de 2024.
A facilidade com que Geisel foi eleito no colégio eleitoral e o resultado das eleições de 1970 deram uma impressão de que o governo e a Arena possuíam não apenas os votos no Congresso, mas também a simpatia popular. Como observou Wanderley Guilherme dos Santos, “os políticos do partido arenista interpretaram mal os resultados das eleições” de 1970. Registros na imprensa ao longo do ano, observou o historiador André Jacobina, demonstram o “excessivo otimismo” que tomava conta do governo e da Arena.
Cautela e mudança de estratégia
Mesmo com pouca representação, o MDB desempenhava o seu papel de “partido consentido”, como na anticandidatura de Ulysses. Para 1974, a sigla se preparou e fez convenções para as eleições para o Senado e a Câmara dos Deputados.
Eleito para o Senado pelo Rio de Janeiro em 1974, Roberto Saturnino Braga, que morreu recentemente, em setembro de 2024, confirma que a avaliação geral era de que a oposição não conseguiria fazer frente ao partido governista naquele ano em uma eleição majoritária.— Ninguém no MDB queria aceitar [ser candidato ao Senado] porque o Paulo Torres, o adversário [da Arena], era considerado imbatível.
A Arena, na eleição anterior, de quatro anos antes, tinha dado uma lavagem no MDB. E o Amaral Peixoto [líder emedebista fluminense da época] me fez um apelo, dizendo que eu prestaria um serviço para o partido — declarou Saturnino em entrevista à Rádio Senado em 2014.As escolhas feitas nas convenções do MDB são uma mostra de como as expectativas não apenas do governo e da Arena, mas também dos próprios emedebistas, não detectaram o potencial da oposição nas urnas.
Houve casos em que o MDB sequer havia apresentado candidatos a deputado federal suficientes para preencher todas as vagas a que teve direito pelos votos obtidos pelo quociente eleitoral, como revela o jornalista Sebastião Nery no livro As 16 derrotas que abalaram o Brasil, de 1975, em que apresenta os resultados e um resumo dos candidatos e das disputas em cada estado. Mesmo sem uma avaliação precisa do prestígio que teria nas urnas, o MDB demonstrou, nas eleições de 1974, que estava disposto a ocupar o espaço de oposição — e de resistência democrática — ao regime militar, ainda que sem eleições diretas para presidente e para governador, com censura e liberdades cerceadas.
Campanha na TV
Segundo Pedro Simon, eleito em 1974 deputado estadual no Rio Grande do Sul pelo MDB com mais de 140 mil votos, o partido usou todas as brechas do regime para antagonizar com a ditadura. Ainda que houvesse censura, o ex-senador destaca a ocupação do espaço possível na imprensa e a possibilidade de, pela primeira vez, fazer campanha no rádio e na TV.
Desdobramentos da eleição de 1974
Surpresa ou não, fato é que as bancadas do MDB no Senado e na Câmara haviam aumentado significativamente a ponto de conquistar direitos assegurados às minorias, como propor CPIs e dificultar a aprovação de legislação que exige maioria qualificada como de propostas de emenda à Constituição (PEC) — que na época precisavam de dois terços dos votos para serem aprovadas.
Propagandas eleitorais na TV entre 1976 e 1982, época da Lei Falcão
A maior reação do governo Geisel à ascensão do MDB viria no ano seguinte, em 1977. Diante da resistência do Congresso em aprovar a PEC de sua autoria que reformaria o Judiciário, Geisel fechou o Legislativo por duas semanas em abril daquele ano. Além da reforma do Judiciário, o presidente decretou um conjunto de medidas que ficou conhecido como “Pacote de Abril”, que incluía, além da reforma judicial, mudanças nos procedimentos do Senado e da Câmara para facilitar a aprovação de medidas de interesse do governo, criando ainda a figura do “senador biônico”: um dos três senadores das bancadas estaduais seria eleito pelas assembleias legislativas, a maioria delas controlada pela Arena.
Plebiscito da ditadura
Nessas cinco décadas, entre novembro de 1974 e os dias de hoje, muitas análises foram feitas sobre o significado daquelas eleições em que os candidatos da oposição ao regime militar, abrigados no MDB, venceram 73% das cadeiras em disputa para o Senado.