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Brasil

“A luta do MST hoje não é só pela terra”

Em 2024, o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra completa quatro décadas. Em entrevista ao Jornal da Unesp, um dos mais conhecidos pesquisadores do movimento social, o geógrafo Bernardo Mançano explica as origens do MST, o percurso da reforma

Publicada em 09/03/24 às 15:57h - 25 visualizações

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“A luta do MST hoje não é só pela terra”
 (Foto: Rádio Rir Brasil - Itapuranga-Goias : Direção: Ronaldo Castro - 62 9 9 6 0 8-5 6 9 5 )

A realização de sessões solenes na Câmara dos Deputados por ocasião das mais diversas  datas comemorativas é algo absolutamente cotidiano que muitas vezes sequer é noticiado pelos veículos de comunicação. Mas, na quarta, 28, uma sessão em homenagem aos 40 anos do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) resultou em tumulto e controvérsia. Deputados contrários ao MST fizeram duros discursos atacando o movimento, enquanto eram vaiados e contestados por políticos de partidos de esquerda, historicamente simpáticos ou mesmo aliados do movimento.  Ao final da sessão, que durou duas horas, a Frente Parlamentar do Agronegócio fez uma entrevista coletiva e lamentou a ocorrência de “censura” sobre os críticos, por parte dos deputados que estavam na mesa diretora durante a sessão.

A alta temperatura no ânimo dos deputados presentes àquele que deveria ser apenas um evento celebrativo formal é um expressivo testemunho da marca que o MST imprimiu na sociedade brasileira ao longo de quatro décadas de atividades, criando clivagens apaixonadas a favor e contra a sua atuação. O fato é que são raros os movimentos políticos e sociais que alcançam existência tão longa, e menos ainda os que estão presentes em quase todos os estados da nação e que podem reivindicar conexões com 400 mil famílias.

Surgido na cidade de Cascavel, PR, em 1984, o MST consolidou-se, dentro e fora do Brasil, como referência de luta popular – e, para seus críticos, como uma permanente ameaça à estrutura fundiária consolidada no país. Nos últimos anos o movimento também ganhou destaque pela sua atividade como produtor de alimentos orgânicos e agroecológicos e pelas ações de solidariedade na doação de alimentos, em especial durante o período crítico da pandemia de Covid-19.

Um dos mais destacados estudiosos do MST, além de colaborador do movimento em diversas iniciativas, é o geógrafo Bernardo Mançano Fernandes. Professor titular da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Unesp, no campus de Presidente Prudente, Mançano coordena, desde 2009, a Cátedra Unesco de Educação no Campo e Desenvolvimento Rural. Ele é autor de diversos livros sobre o movimento social, que é um objeto central de suas pesquisas sobre desenvolvimento territorial. 

Em entrevista concedida ao Jornal da Unesp, Mançano apresenta o contexto socioeconômico que fomentou, no início dos anos 1980, o surgimento do movimento social mais conhecido do país, discute sua orientação político-ideológica e analisa a intensificação da presença, nos ambientes urbanos, de um movimento de camponeses.

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Qual foi o conjunto de circunstâncias históricas que levou ao surgimento do MST, em 1984?

Bernardo Mançano: Existem dois fatores determinantes que levaram ao surgimento do MST, em 1984. Um deles foi o processo de modernização conservadora da agricultura. Esse foi um conceito criado por José Graziano da Silva, economista da Unicamp que mais tarde se tornaria diretor-geral da FAO. Ele usava esse termo para explicar a modernização capitalista e parcial que se preocupava apenas com um setor e não com a agricultura como um todo. Naquele momento, nós já estávamos vivendo desde os anos 60, 70 e 80 a formação do agronegócio brasileiro e não havia espaço para a agricultura camponesa, ou agricultor familiar, como eles vieram a ser conhecidos. Esse grupo estava desterritorializado. Eles estavam sendo expropriados de suas terras, que estavam sendo usadas tanto para especulação quanto para a produção de monocultivos.

Nesse contexto, havia em diversos estados do país — como RS, PR, SC, no Nordeste, etc.—  uma série de lutas locais de resistência mobilizando pessoas que tentavam continuar atuando como produtores agrícolas. Mas estas pessoas não encontravam espaços, neste modelo de desenvolvimento voltado para a agricultura empresarial, e tampouco havia políticas públicas para essa população. Então, o MST nasceu nesse contexto de mudança de modelo de desenvolvimento, com a formação do agronegócio. Esse foi o contexto econômico.

O contexto político da época era o da Ditadura. Os governos militares defendiam e apoiavam esse modelo de modernização conservadora e o agronegócio que ainda estava se formando. Não era tão poderoso como hoje, mas já recebia apoio de governos de todos os países em que este modelo estava sendo implantado. Assim nasceu o MST. Hoje, é reconhecido pelas transformações que conseguiu construir na sociedade brasileira e se tornou uma referência dentro de uma articulação mundial de movimentos camponeses.

Muito poucas organizações sem vínculos com o Estado conseguem completar quatro décadas de atividades no Brasil. O que permitiu ao MST sobreviver até aqui?

Bernardo Mançano: Vou usar uma única palavra: democracia. Se nós tivéssemos tido o golpe agora nas últimas eleições, com certeza a primeira organização a ser extinta seria o MST. O MST vai se constituindo num modelo sustentável trabalhando com a soberania alimentar, ou seja, garantir que a comida chegue para todas as pessoas. É preciso diferenciar da segurança alimentar. Segurança alimentar é garantir que a comida chegue até as pessoas, mas a soberania alimentar é garantir que as pessoas possam produzir sua própria comida e não depender das grandes corporações, das exportações ou das importações. É você ter uma estratégia de produção da sua própria comida.

Em paralelo à atuação do MST nesses 40 anos, se construiu também uma grande corrente crítica do movimento no país. Uma das críticas que se faz é que a mobilização do movimento não envolve apenas a questão do acesso à terra, mas a implantação de um sistema político diferente no país. Qual o peso que a questão ideológica tem no MST?

Bernardo Mançano: O MST, por sua própria origem, é anticapitalista e luta contra o capitalismo no seu cotidiano. Todas as experiências produtivas do MST eliminam a exploração das pessoas. Por meio das cooperativas, ele trabalha pela inclusão e contra a exclusão. Ele atua na educação e na saúde também, ou seja, está sempre preocupado com o programa inclusivo, um programa sustentável, numa perspectiva anticapitalista. Toda vez que o MST cria um novo território, vai desenvolver lá relações sociais anticapitalistas com pessoas que estão compreendendo que a condição de existência delas não é uma condição de existência subordinada ao capital, mas de emancipação numa perspectiva comunitária e socialista.

O MST, por sua própria origem, é anticapitalista e luta contra o capitalismo no seu cotidiano.

Mas qual é, afinal, essa perspectiva? Ela está em construção. Temos uma experiência socialista de um século durante o século 20 com a qual se pode aprender muito. O que não podemos fazer é jogar uma experiência histórica na lata do lixo. É preciso pensar que,  embora o capitalismo tenha vencido a batalha contra o socialismo no século passado, não significa que a guerra acabou. Há uma guerra entre modelos de desenvolvimento,  e o MST é hoje, no Brasil, uma das instituições que mais investe numa práxis revolucionária. Isso no sentido de criar novos territórios, novos espaços, que incluem as pessoas e permitem o seu desenvolvimento. Espaços de solidariedade, territórios de esperança. A utopia do socialismo permanece e o MST é uma instituição que vem praticando isso todos os dias, em todas as dimensões da vida.

A discussão em torno da concentração de propriedade fundiária no Brasil é antiga, precede em muito o MST, mas ele se projetou como o grande defensor da continuidade dessa luta. Ainda assim, estamos no quinto mandato de um governante de esquerda, e a grande reforma agrária, que chegou a ser prometida por estes governos, não aconteceu. O MST ainda sustenta essa bandeira?

Bernardo Mançano: Da mesma forma como estamos experimentando uma modernização conservadora, vivemos uma reforma agrária conservadora. As políticas de reforma agrária começaram no governo Sarney, mas em nenhum momento conseguiram desconstruir a estrutura fundiária porque o conjunto de ações de ocupações de terra não foi suficiente. Todas as políticas de desapropriação de terras foram vinculadas às ocupações de terras. E por mais que os governos tenham criado metas de desapropriação, nunca conseguiriam cumpri-las se não fosse com a ajuda do MST e de outros movimentos de luta pela terra, que fizeram pressão para que os governos desapropriassem as terras que estavam ocupadas.

A reforma agrária se torna cada vez mais necessária para ampliar a produção de alimentos saudáveis, e também ajudar a acabar com a fome.

Essa concentração fundiária é uma questão estrutural para se pensar a reforma agrária. Não há reforma agrária sem desconcentração fundiária. Só que, agora, há outro tema importante, que é a produção agroecológica. A reforma agrária se torna cada vez mais necessária para ampliar a produção de alimentos saudáveis, e também ajudar a acabar com a fome.

Quando o Brasil deixou o mapa da fome, a grande contribuição para expandir a produção de alimentos veio da agricultura camponesa. Quando o Brasil voltou ao mapa da fome, durante o governo Bolsonaro, isso esteve relacionado ao fato de que essas políticas foram exterminadas. Hoje sabemos que o que acaba com a fome não é o agronegócio, mas sim a agricultura camponesa. E, para que a agricultura camponesa possa continuar atuando em direção à extinção da fome, é necessária a reforma agrária. Portanto a reforma agrária está colocada como uma política de futuro, assim como a produção de alimentos saudáveis, para que a gente possa superar de vez o problema da fome em nosso país.

Quais foram as outras iniciativas que o MST desenvolveu ao longo deste tempo além da luta pela posse da terra?

Bernando Mançano: Nós, os pesquisadores de movimentos sociais, organizamos um banco de dados em que analisamos e registramos as ações dos movimentos no campo e na cidade. O que nos chamou a atenção foi que o movimento socioterritorial mais ativo no campo é o MST. Metade das ações que nós temos no campo brasileiro são feitas pelo MST.

Mas, o que nos chamou a atenção recentemente é a informação inédita de que, no espaço urbano, o movimento mais ativo que temos hoje também é o MST. Ele tem praticado mais ações de comercialização, de solidariedade, de debate político, de relação com outros movimentos na cidade. O MST oferece Armazéns do Campo, feiras agroecológicas e cestas de alimento em todo o Brasil, além de participar do mercado institucional com prefeituras, governo estadual e federal. E o mais interessante é que tudo isso tem uma base territorial, que é a reforma agrária. As pessoas que participam desse processo conquistaram a própria terra que produz o alimento.  A luta do MST hoje não é só a luta pela terra, mas também a luta pela comida, e por isso ele está no campo e na cidade com uma presença intensa.

Imagem acima: Agatha Azevedo/Despejo Quilombo Campo Grande/MST




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