Menos de um mês depois de o Ministério Público do Estado do Pará (MP-PA) pedir a prisão do dono da Brasil BioFuels (BBF) por acusação de tortura, o cacique Lúcio Gusmão Tembé, que atua contra a invasão da empresa no território de seu povo, é baleado na cabeça. O atentado aconteceu no começo da madrugada do último domingo (14), no Vale do Acará, nordeste do Pará.
O cacique da Terra Indígena (TI) Turé-Mariquita dirigia, acompanhado de seu sobrinho, na estrada que liga o município de Tomé-Açu (PA) à sua aldeia, quando o carro atolou. Segundo o sobrinho, no momento em que desceram para tentar resolver a situação, uma moto vermelha com dois homens encapuzados se aproximou. Um deles atirou no rosto do cacique Lúcio. Seu sobrinho deu conta de arrastá-lo para dentro do mato enquanto a moto fugia.
Depois de esperar dez horas na unidade de saúde da cidade, o cacique foi transferido em uma aeronave para o Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência, próximo a Belém (PA). Seu estado é grave, mas estável. De acordo com seus familiares, a equipe médica está tratando da inflamação no ferimento para, em seguida, fazer uma cirurgia que tire a bala alojada no seu rosto e recuperar o maxilar quebrado.
Na tarde desta segunda-feira (15), o Ministério Público Federal (MPF) do Pará convocou uma reunião de emergência em Belém, com autoridades e lideranças de comunidades tradicionais da região.
Nela, a despeito da discordância de Luciano de Oliveira, representante da Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará (Segup), as lideranças comunitárias se queixaram da omissão das forças do Estado em protegê-las. Ao contrário, afirmam ser criminalizadas e intimidadas pela polícia.
Em relação ao atentado, relata o advogado e antropólogo Vinicius Machado, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), “a polícia disse que suspeita de uma tentativa de roubo. Sendo que não levaram absolutamente nada”.
Ao Brasil de Fato, a Segup se limitou a dizer que “um inquérito policial já foi instaurado para apurar e investigar a autoria da tentativa de homicídio” e que a investigação está sendo feita pela Polícia Civil “em conjunto com órgãos federais”.
Diversas entidades de defesa dos direitos humanos estão acompanhando o caso, entre elas, a Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SPDH), a Comissão de Direitos Humanos da OAB Pará, Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Cimi e a Associação Brasileira de Juízes para a Democracia (ABJD).
Para o MPF, o atentado é “mais um capítulo da série de violações que indígenas e quilombolas vêm sofrendo desde que a implantação do monocultivo do dendê acirrou os conflitos socioambientais na região”.
“Não queremos secretarias que venham servir de fachada, para que a COP [Conferência do Clima da ONU] venha para cá e diga que protege o meio ambiente. Queremos proteger a floresta e salvar as nossas vidas. As vidas dos nossos caciques, das nossas crianças”, afirma Paratê Tembé, filho do cacique Lucio e também liderança de seu povo.
“Na nossa região não é de hoje que vem acontecendo isso. É uma luta de décadas, com assassinatos de lideranças indígenas, quilombolas e ribeirinhos. E nada é feito”, denuncia Paratê, em vídeo divulgado para a imprensa. “Estamos rezando para que ele sobreviva. Tupã vai nos ajudar. Não teve nem tempo de chorar”, diz, e se emociona no mesmo instante: “Morremos hoje por lutar pelos nossos direitos, pela floresta, pela nossa vida”.
Aos 55 anos, o líder Tembé sabia que sua vida corria risco. “Já tinha sofrido várias ameaças de morte por conta do conflito que existe com as empresas de palma de dendê na região”, conta Vinicius Machado.
Comunidades cercadas pela monocultura de dendê
Os conflitos agrários na região se acirraram a partir de 2009, quando a monocultura de dendê para produção de biodiesel a partir do óleo extraído do fruto da palma chegou na região com a Biopalma Amazônia, um consórcio entre o grupo Vale e a Biopalma da Amazônia S. A. “Neste momento não foi feita a consulta e o consentimento prévio das comunidades”, relata um Manoel*, indígena do povo Tembé, lembrando que esse procedimento é obrigatório de acordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário.
Desde então, dendezais cercam os seis quilombos da Associação Amarqualta, as 13 aldeias da Terra Indígena (TI) Turé Mariquita e as três da TI Turyuara. As três áreas aguardam a delimitação reivindicada de seus territórios, cuja ocupação data de ao menos dois séculos.
Duas áreas quilombolas aguardam a titulação há cerca de 10 anos. Os Tembé reivindicam, desde 2016, que a área de 147 hectares demarcada há 30 anos seja ampliada. Os Turyuara esperam, ainda, a homologação que concluirá o processo demarcatório. “Tem dendê plantado tanto em área limítrofe, quanto em áreas de ocupação tradicional das comunidades”, denuncia Manoel.
Em 2018, os ativos da Biopalma foram comprados pela empresa Brasil BioFuels (BBF). A gigante do agronegócio na região Norte é a maior produtora de óleo de palma da América Latina, com 75 mil hectares de área plantada, e está atualmente instalada no Pará, Acre, Rondônia, Roraima e Amazonas.
No fim do ano passado, o MPF obteve autorização para fazer uma perícia científica que mensure os impactos da BBF na região. Desde 2014, diz o órgão, “há indícios de que o uso de agrotóxicos no cultivo de dendê provoca sérios danos ao meio ambiente e, principalmente, à saúde dos indígenas”.
“Não estamos afirmando categoricamente que há um envolvimento da empresa”, atesta Manoel, se referindo à emboscada de domingo: “Mas também não descartamos. Porque o Lúcio não tem conflito com ninguém, a não ser com a empresa, devido à atuação dele enquanto liderança na defesa do território das comunidades”.
No último 17 de abril, o promotor Emérito da Costa Mendes do MP-PA pediu a prisão do dono da BBF, Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, e do chefe de segurança da empresa, Walter Ferrari. Eles são acusados de serem responsáveis por um caso de roubo, tortura e espancamento de 11 pessoas da comunidade ribeirinha Bucaia, no Vale do Acará, ocorrido em 2021. A Justiça ainda não se manifestou.
O documento denuncia, ainda, que “resta claro indícios de tentativa de influência indevida da empresa BBF nos órgãos de segurança do Estado, tendo inclusive acesso a sistemas públicos fechados”.
A empresa também é investigada por possível envolvimento em outro atentado que aconteceu em setembro de 2022. Dois veículos ocupados em sua maioria por indígenas Turyuara foram alvejados por homens que dispararam de dentro de um Gol vermelho, na rodovia PA-256. Clebson Portilho, um não indígena que dirigia um dos carros, morreu. Outros se feriram. No dia seguinte, uma casa usada para rituais e encontros do povo Turyuara foi queimada.
“A empresa tem investido muito pesado em segurança. São seguranças muito truculentos, especialmente em áreas de difícil acesso, com pouco sinal de celular”, afirma Manoel. “Realmente ameaçam, atiram mesmo. Pouco tempo atrás um quilombola foi alvejado com um tiro de raspão disparado por um segurança da empresa uniformizado em Acará”, diz.
“Eles fazem abordagens inclusive como se polícia fossem. Param veículos, fazem revistas”, conta o indígena, ao resumir: “É um modus operandi da empresa aqui na região”.
Ao Brasil de Fato o MPF informou que há investigações em curso sobre “eventuais crimes e irregularidades cometidas por milícias e empresas de segurança na região”.
Procurada, a BBF classifica todas as denúncias como “narrativas fantasiosas”. Em relação à acusação de tortura envolvendo o dono e o chefe de segurança, a empresa diz que são “informações falsas” relatadas por dois ex-funcionários que foram demitidos “devido a condutas antiéticas” e que, por isso, “buscam afetar a reputação da empresa” para extorqui-la.
“O Grupo BBF também refuta qualquer ilação a respeito da sua ligação com o ataque ao cacique Lúcio Tembé e espera que as autoridades esclareçam o mais rapidamente possível os fatos. A companhia se solidariza com as vítimas e estima rápida recuperação da saúde do cacique”, informa a nota.
Além disso, a gigante do agronegócio diz que “mantém diálogo contínuo” com as comunidades indígenas e quilombolas que “coabitam” as áreas onde a empresa “desempenha suas atividades produtivas”.
* O nome foi alterado para a preservação da fonte.
Edição: Thalita Pires – BdF