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Brasil de Lula a Bolsonaro – as diferentes faces da contrarrevolução

Não faz muito tempo que, a soldo do capital financeiro internacional, o neoliberalismo social brasileiro – a nossa paródia neodesenvolvimentista – se apresentava ao mundo como exemplo de contemporização de classes e de prosperidade a partir de uma pe

Publicada em 05/11/22 às 21:42h - 21 visualizações

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Brasil de Lula a Bolsonaro – as diferentes faces da contrarrevolução
* Maria Orlanda Pinassi é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e da Escola Nacional Florestan Fernandes.  (Foto: Rádio Rir Brasil - Itapuranga-Goias -Brasil : Direção: Ronaldo Castro - 62 9 9 6 0 8-5 6 9 5 A voz do Manejo Agroindustrial )

Por: Maria Orlanda Pinassi *

Não faz muito tempo que, a soldo do capital financeiro internacional, o neoliberalismo social brasileiro – a nossa paródia neodesenvolvimentista – se apresentava ao mundo como exemplo de contemporização de classes e de prosperidade a partir de uma periferia em ascensão.

Ideologicamente conduzido pelo lulismo, o programa foi bem-sucedido e seus resultados positivos distribuídos conforme o grau das expectativas. Lucros fartos para uns poucos; alívio da pobreza para muitos, o que não significava pouca coisa num país cuja política se habituou a contemplar somente os privilégios das elites. Sua longevidade – 12 anos de Planalto – deveu-se à montagem de intrincado esquema de controle da máquina estatal em todos os níveis da federação. E a popularidade veio dos pesados subsídios destinados a setores da burguesia brasileira – em avançado processo de transnacionalização já desde a ditadura militar-empresarial -, enquanto articulava exitosas políticas de ação compensatória, algumas das quais iniciadas no governo de FHC.

Mitigação da fome, distribuição de renda, recuperação dos índices de empregabilidade (da alta rotatividade e precarização) com carteira assinada e do salário mínimo, ampliação da esfera nacional de educação superior (e do crédito privado) e fortalecimento dos Direitos Humanos de matiz liberal focados no indivíduo – mulher, negro, indígena, LGBTQ – foram algumas das suas mais importantes medidas de abrangência e de controle social. Mas, como tudo no capitalismo tem um lado B proeminente, sinais negativos, na medida em que apareciam, seguiam escusados pela satisfação de urgências maiores, numa estratégia política transformada em virtude.

No decorrer daqueles anos de bonança, os mais atentos observavam um desaparecimento paulatino de políticas destinadas à classe trabalhadora – aliás, a própria palavra classe trabalhadora foi gradativamente suprimida do vocabulário governamental. No lugar dela surge uma noção mais larga e flexível de “classe média” formada de (trabalhadores precários, temporários) empreendedores, colaboradores, consumidores e devedores do sistema de crédito financeiro.

O programa, se não forma uma classe média de fato, forja uma poderosa falsa consciência essencial ao amesquinhamento das lutas política, sindical e social, ao aprofundamento generalizado da alienação de um enorme segmento que descobre, mediante políticas afirmativas, uma individualidade sem lugar social definido. Da crise que se abateu no país depois de 2013 emergiu uma perigosa fragmentação, politicamente inculta, que, durante o tempo das vacas gordas, não parecia assim tão nociva. Pois foi exatamente essa parcela substantiva da sociedade que se revoltou contra o que hoje vêm tratando de “velha política” apoiando, esperançosa e com expectativas ainda mais rebaixadas do que em 2003, a tal “nova política” encaminhada pela transição do período Temer e efetivada com ferocidade pelo governo Bolsonaro.

Desde então, parece que entramos num mundo distinto, muito, mas muito pior do que poderia supor o nosso pior pesadelo. No entanto, ao contrário do que muitos afirmam, Bolsonaro não é retrocesso, nem um fascismo indiferenciado. Parece um tipo ainda mais virulento de fascistização alinhada aos EUA e destinada à desqualificação material e moral do Brasil nas hierarquias de uma nova divisão social do trabalho. Ou seja, o tão sonhado “empoderamento” do país dos BRICS no IIRSA, no Conselho de Segurança da ONU, no FMI, é transformado em pó, agudizando ainda mais a nossa histórica condição de dependência estrutural.

A fonte secou para o neoliberalismo social. Isso quer dizer que o último período “progressista”, embaralhado por ideias ecléticas, foi instado a ceder espaço para a realidade dos fatos. “Cada macaco no seu galho”: burgueses de um lado, precarizados de outro. Sem pacto de classe, sem negociação, sem diálogo. O esbulho ideológico, cevado nos eufemismos palacianos que por anos se empenhou em contemporizar a luta de classes, foi abruptamente substituído por atributos políticos antiéticos. [1]

A brincadeira irresponsável da inculcação de classe média consumidora nas massas se transformou em algo imprevisível e perigoso. Artificiosamente abonadas por crédito fácil, abundante, tentação para o endividamento, as massas foram abandonadas às feras por seus ídolos pacificadores, eles mesmos encantados e lambuzados em propinas fartas e fáceis da época das vacas gordas da financeirização internacional.

Desesperançadas pela forma lamentável com que se derrubou o passado recente, lançadas sem subterfúgios ao desemprego e à informalização, submetidas diuturnamente à rapina de seus direitos, as massas parecem ter razão em se recusar à política como espaço de “representação honrada”. A realidade cruenta de suas vidas cotidianas somada às profundezas amargas de sua histórica exclusão política as leva para o campo do circo e do ódio inspirados por personagens violentos, jocosos, pornográficos, cínicos, quase todos evangelizados por pregações satânicas. Capitães, pastores, monarquistas, subcelebridades e juristas tresloucados, muitos dos quais conhecidos aliados do lulismo, refletem uma indigesta predisposição para o abismo. Da cena saiu a concertação, ficaram as migalhas do pão amanhecido e o vislumbre de um espetáculo sinistro.

A suspeitosa ascensão do candidato belicista, estrondosamente votado naquele domingo 7 de outubro, após estagnação e mesmo tendência à queda nas pesquisas, foi realmente surpreendente. O fenômeno, porém, não se deu de modo espontâneo na base ignara da sociedade, senão como resultado de uma articulação muito bem montada entre as forças que representam os atuais interesses da nossa burguesia e nosso capitalismo associado e dependente, instados a atender as exigências do novo e agressivo padrão de acumulação ditado por EUA e Israel.

Criminosamente, a mesma mídia que compôs com esmero o Diário da Facada não condenou nem as traquinagens fascistóides das crias bolsonazi nem as declarações ameaçadoras do vice-general. Ao mesmo tempo, institutos de pesquisa de reputação questionável “comprovavam” o crescimento dos números de Bolsonaro divulgados à exaustão por todos os meios de comunicação. Do templo de Salomão, Edir Macedo e seu Império Universal apontaram para a ira dos céus e a via do inferno para os infiéis desviantes de sua orientação sufragista. Luciano Hang, tal como um pai patrão, destilou pânico entre seus funcionários. Voto de cabresto, fraudes, fakes, truques, redes sociais e toda sorte de meios violentos e enganosos contribuíram de modo decisivo para o resultado do pleito.

Parece que um tempo de esclarecimentos muito difíceis se abre e desafia quem se dispuser a encarar as reais necessidades da história, da nossa história brasileira, latino-americana. O quadro, enfim, nos ajuda a encaminhar uma possível compreensão para a apatia popular brasileira frente ao Outubro Vermelho Latinoamericano. Afinal, estamos no aquém ou no além de Chile, Bolívia, Equador, Haiti, Honduras, Colômbia?

Na quadra atual, o Estado brasileiro vem dando exemplos sombrios de como ajoelhar-se diante do império e das empresas estrangeiras interessadas nos nossos recursos humanos e nos nossos recursos naturais (nossas terras, minérios, gás, petróleo e, principalmente, nossa água). Aprofunda a histórica subalternização do país à ordem mundial promovendo a destruição massiva dos direitos da classe trabalhadora que se agiganta de maneira absolutamente precarizada. O Estado brasileiro dissolve agências de proteção ambiental e acoberta múltiplos ataques aos vários biomas alguns dos quais com danos irreversíveis– Mariana (2015) e Brumadinho (2019), com perdas de muitas vidas humanas e com enorme degradação da fauna, da flora, do ecossistema da região; incentiva o desmatamento e as queimadas na Amazônia, no Cerrado, no Pantanal, em todo território nacional; avaliza os massacres cada vez mais frequentes de lideranças indígenas, quilombolas, camponesas e de ambientalistas; negligencia a gravidade absurda do vazamento de óleo que contamina toda costa do litoral nordestino chegando ao Sudeste. O Estado brasileiro é a iminência parda das milícias que assassinam lutadoras impertinentes como MarielleFranco e exterminam jovens negros e pobres encurralados em guetos urbanos. É conivente com o aumento brutal dos feminicídios; e agencia o desmonte do sistema público de educação, saúde, cultura, das artes entregando todos os setores para a privatização internacional.

A única solução encontrada aponta para a linha de baixíssima resistência do Lula Livre. Daí a questão: o que mais o metabolismo de reprodução social do capital poderia almejar do que forjar um ultraneoliberalismo para usufruir de um mundo onde possa superexplorar à exaustão – e sem reação – a plena capacidade de trabalho disponível; onde tenha a posse absoluta – e sem obstáculos legais – dos recursos naturais, por mais ocultos e preservados. Um mundo em que as instituições correspondam integralmente às ganâncias mais absurdas e fetiches mais bizarros de suas personificações dominantes, um mundo em que a satisfação exclusiva das necessidades de alguns ricos seja aceita com resignação pela massa incontável de pobres?

Pois é assim, como um laboratório de controle social total, um laboratório de experimentos pacíficos e violentos de contrarrevolução, que o Brasil se apresenta ao continente que ousou se insurgir contra o já longo processo de espoliação neoliberal. De Lula a Bolsonaro, funcionamos como antídoto das insurgências populares que eclodem nos países vizinhos.

Neste exato momento não se pode ainda tecer prognósticos sobre o fenômeno, mas a onda de revoltas contra medidas neoliberais impopulares no Equador, Chile, Bolívia, Haiti, Honduras, Colômbia, mostra caminhos de organização popular, distantes da institucionalidade e que por isso mesmo começam a abalar a ordem. Nestes caminhos vemos um encontro interessante de trabalhadoras e trabalhadores, na ativa e aposentadxs, de indígenas e de camponesxs, de estudantes, de mulheres, homens, um encontro racial, de gerações e de gênero. Sem hierarquias. Mas, nunca é demais lembrar que todas essas manifestações advêm da realidade dramática que o capitalismo oferece para a esmagadora maioria da população que depende da venda de sua força de trabalho em todo o mundo. E apesar de todos os argumentos contrários e de todos os desarranjos provocados pelo sistema, a mais imperiosa necessidade do capital é manter estrito controle sobre o trabalho seja lá o formato que ele tenha: se produz mais valia absoluta ou relativa, se o trabalho é formal ou se é informal, se é legal ou escravo.

Nesse sentido, a luta deve ser reconduzida para o lugar de onde nunca deveria ter saído, ou seja, para o campo da transição revolucionária e popular, reconhecendo-se neste processo a importância de se respeitar a singularidade ontogenética dos indivíduos em combate e o lugar social que ocupam na sociedade. Estamos falando de uma requalificação da luta de classes com sujeitos efetivos e conscientes do seu papel revolucionário não nas sombras de um partido ou movimento social, mas participando de suas decisões. Para que isso se realize verdadeiramente é necessária uma rigorosa, difícil – em muitos casos impossível -autocrítica sobre os caminhos trilhados até aqui e, a partir daí, perguntar-se sobre o horizonte a ser conquistado: se um passado requentado, se um futuro radicalmente transformado.

As questões são procedentes porque, paradoxalmente aos agravamentos oriundos do acúmulo de contradições sociais e do mau funcionamento do sistema em todo seu metabolismo social, a naturalização da sua hegemonia, historicamente fundamentada em ideologias apologéticas e decadentes, reduziu de modo drástico o campo de visão e de ação das organizações de trabalhadoras e trabalhadores, nos sindicatos, nos partidos políticos, nos movimentos sociais. E justamente quando mais se necessita de posicionamentos decisivos e firmes contra o capital (e não apenas contra o capitalismo) [2], amplia-se a adesão à linha de menor resistência e acrítica antineoliberal (fragmentada e “empoderada” em torno de si mesma) dos anos 2000. Lembremos do modelo traçado pelo Fórum Social Mundial com seu slogan “Um outro mundo possível” a partir de uma pluralidade totalmente esfacelada.

Repensando a emancipação

Há muito tempo que a esquerda não joga qualquer papel digno de nota. Está perdida, sem direção, sem função e à deriva de um politicismo frouxo, teimando em fazer parte de um parlamento irremediavelmente apodrecido e incapaz de sequer lhe dar ouvidos. Para essa esquerda que abdicou do futuro e se curvou aos apelos republicanos, parece intransponível o abismo que nos separa de uma existência substantivamente humana, não alienada e livre para expressar-se por meio de representações individual e coletivamente ricas em sua autêntica diversidade. Ora, esse rebaixamento das expectativas tem lastro.

De modo predominante, o século XX legou às esquerdas dois caminhos aparentemente divergentes entre si.[3] Os marcos históricos dessa suposta divergência podem ser localizados na ascensão e na queda do socialismo realmente existente. No princípio se ergue um profícuo marxismo instrumental, europeizante, evolucionista, com forte apego ao desenvolvimentismo capitalista e escudado em ideais universalizantes. Para esse marxismo positivista, herdado da II Internacional e tornado oficial na URSS antes mesmo da ascensão de Stalin, as hierarquias são estabelecidas como dogmas pela vanguarda do partido (portador da consciência) sobre a massa, pelo predomínio do coletivo sobre o indivíduo, pelo fundamento de um suposto objetivo sobre a subjetividade, pelo ideal revolucionário acima do cotidiano e da realidade adversa da luta. Exemplos das imensas dificuldades de sintonia entre teoria e ação podem ser observadas já na Revolução Russa [4], nas Lutas de Libertação da África [5]e na interpretação do capitalismo e da luta de classes na América Latina. [6]

Na segunda metade do século XX, o Estado de bem-estar social com seus pactos de classe -verdade que distribuído de modo desigual e combinado pelo centro e pela periferia -, criou um clima de otimismo e um esforço de teorização com perspectivas não conflitivas, todas antimarxistas [7]. Surgem daí as teses do fim da história, do fim das ideologias e do fim da sociedade do trabalho. Na mesma linha, surgem análises que trazem o identitarismo – nacionalista, negro, feminino, ambiental, – para o centro das preocupações com a institucionalização das particularidades e com a luta por direitos de igualdade formal dentro de umaordem substantivamente desigual.

Façamos aqui uma pausa para pensarmos uma experiência recente vivida intensamente em quase toda a América Latina, quando uma onda de redemocratização vigiada advém do longo e brutal período controlado por ditaduras civis sob tutela militar. No Brasil dos anos de 1980, a sociedade civil se reorganiza nos bairros, nas fábricas, nos sindicatos, em movimentos de luta pela terra e em partidos políticos. As organizações funcionam como extensão da divisão social do trabalho e das hierarquias conforme a lógica do capital. O braço agrícola, o braço industrial, o braço parlamentar. Todos reivindicativos, dependentes de políticas públicas num país de tradição autocrática (sim, a luta, sobretudo no campo sempre foi muito difícil por aqui) e com seus tipos ideais weberianos: o camponês, o operário e aquele com vocação política. Uma nova questão a se fazer: qual o papel desse esquematismo militante num mundo de homens e de mulheres cada vez mais polivalentes na sua extrema miséria e precarização?

Voltando, então, para aquela dicotomia que vínhamos analisando, temos aqui um dilema relativo. De um lado, a teoria revolucionária apoiada em um sujeito coletivo/abstrato (o partido como sua consciência possível) afastado do cotidiano de mulheres e de homens reais. De outro, uma série de teorias críticas baseadas num presentismo identitário, fracionado e sem vislumbre revolucionário. Um embate desgastante, inócuo e, quase sempre restrito à babel acadêmica e produtivista entre uma esquerda iluminista incapaz de compreender a dialética fora dos livros e uma esquerda socialdemocrata, plural e a-histórica. Pois bem, nem idealismo sem sujeito, nem indivíduo sem lugar social nos servem como referência para as lutas que teremos de enfrentar.

Tentaremos com isso abrir um campo de análise e intervenção a partir de alguns espinhos da história latino-americana. É possível que a atualização deles nos ajude a encontrar explicações e quem sabe saídas de velhos e impenitentes problemas.

Quando falamos em combater o capital não nos referimos apenas a um sistema político e econômico que nos oprime e empobrece. Falamos também de uma grave e resistente deformação societária, de alienação e naturalização do que é essencialmente histórico. Por exemplo, quando questionamos a respeito de quem são os sujeitos da revolução, não nos interessa polemizar sobre o que é mais importante ressaltar: se a sua condição de classe ou se sua condição humana (se mulher, se negra, se negro, indígena, branco ou branca, se gay, oriental). Desde a forma como encaramos as coisas, isso é ontologicamente impossível. Vamos então superar as dicotomias reproduzidas por aqueles antigos equívocos que colocam de um lado a classe de outro o sexismo, a racialização, a nacionalidade.

O capital em si não é preconceituoso, nem tem credo religioso porque seja generoso. Na hora de explorar ele acolhe a todos e todas sem distinção, inclusive os velhos, as crianças, os deficientes, presidiários. Costumam dar a isso o nome de responsabilidade social. Mas as diferenças surgem na hora de avaliá-los e remunerá-los como mercadorias que são. É exatamente essa hierarquização constituída pela conveniência do capital que os indivíduos inseridos nesta lógica irão reproduzir: uma alienação que é autoalienação ao mesmo tempo. Então, vamos a Marx.

Para ele, o pressuposto do processo que produz e reproduz a relação-capital pode ser observado em toda história da acumulação de riquezas, algo que desde a sua fase originária, vem sendo moldada por todos os momentos em que grandes massas humanas são arrancadas súbita e violentamente de seus meios de subsistência e lançadas no mercado de trabalho como proletários livres como pássaros. A expropriação da base fundiária do produtor rural, do camponês, forma a base de todo o processo. Sua história assume coloridos diferentes nos diferentes países e percorre as várias fases em sequência diversa e em diferentes épocas históricas. [8]

A brutalidade que marcou os cercamentos na Europa foi intensificada pela empresa colonial na pilhagem de mulheres e homens da África conduzidos para o inferno da escravidão no “Mundo Novo”. Ao mesmo tempo, um destino de massacres se abateu sobre as populações nativas dos territórios espoliados. Já no pecado original do sistema do capital, europeus, africanos, indígenas, adultos, crianças e velhos, assalariados lá, escravos aqui, no chão de fábrica, no eito, todos e todas teriam sua integridade humana e cultural destruída para serem transformados em peças para a produção de coisas, condição de sua inserção na imensa força de trabalho abstrato.

Meu trabalho não é vida (…) uma vez pressuposta a propriedade privada, minha individualidade se torna estranhada a tal ponto, que esta atividade se torna odiosa, um suplício e, mais que atividade, aparência dela; em consequência, é também uma atividade, aparentemente imposta e o único que me obriga a realiza-la é uma necessidade extrínseca e acidental, não a necessidade interna e necessária. [9]

É dessa maneira alienada, expressão de uma relação social baseada na propriedade privada, no dinheiro e no trabalho abstrato, que a existência no mundo do capital se manifesta e se desenvolve como existência desumanizada, coisificada. As relações sociais, neste caso, se convertem em relações entre coisas.

A igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de uma objetivação igual de valor dos produtos do trabalho, o grau em que se gaste a força humana de trabalho, medido pelo tempo de sua duração, reveste a forma de magnitude de valor dos produtos do trabalho e, finalmente, as relações entre uns e outros produtores, relações em que se traduz a função social de seus trabalhos, cobra a forma de uma relação social entre os próprios produtos de seu trabalho. [10]

O que podemos adiantar a esse respeito, é que quanto mais os indivíduos se afastam daquela sua condição originária e mais contaminados ficam pelas deformações societais burguesas, mais tendem a naturalizar e a reproduzir os valores do capital contra si mesmos. Sua alienação se desenvolve e se agiganta na mesma proporção do desenvolvimento capitalista. Se entrega à democracia e à institucionalidade burguesa. Seus sonhos, se algum dia foram de libertação, se encaixam em algumas meras políticas públicas. Desconhece-se o sentido mais profundo das lutas de seus antepassados, ainda que os admirem. A grandeza das guerras indígenas contra os colonizadores, das lutas dos africanos tiranizados contra a sociedade escravista, do combate de vida e de morte daquelas mulheres e homens contra uma civilização visava a preservação da sua integralidade ainda não alienada, nem contaminada por valores corrosivos.

Pensando através de uma linha do tempo conduzida pela imposição do sistema do capital sobre o ser do trabalho abstrato seguida de uma naturalização que predispõe à resignação, é que se compreende a predominância da pequena política, o rebaixamento das expectativas. Além disso, se compreende também a tendência à fragmentação e autonomismo das causas (feministas, raciais, sexistas e ambientais).

A proposta então é a retomada da consciência substantiva dos seres atingidos e oprimidos pelo capital tendo em vista uma ofensiva que vai muito além da unidade de fragmentos que praticam mais o duelo do que o encontro. Não se trata de somatória de forças, mas de síntese fundamentada em uma solidariedade humana contra um sistema irremediavelmente irracional.

O combate ou a morte: a luta sanguinária ou o nada. É assim que a questão é invencivelmente posta. Georges Sand

Notas:

[1] Cada uma das pastas ministeriais é ocupada por um ou uma representante da sua negação. Damares, Weintraub, Salles são os que melhor personificam a quebra dos ilusórios valores universais, do “politicamente correto”, a inversão das conquistas nos campos ainda que formais dos Direitos Humanos, do feminismo, da educação e meio ambiente. Deus, Olavo de Carvalho, Steve Bannon no comando.

[2] Ver a distinção entre capital e capitalismo em István Mészáros, Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002.

[3] Não desconhecemos as inúmeras outras saídas propostas no campo das esquerdas, apenas assinalamos as duas que mais prevaleceram, como fizemos questão de mencionar.

[4] De todos os fatores explicativos sobre a derrota da experiência soviética, nenhum outro consegue ser mais esclarecedor do que o dramático cotidiano vivido pelas camponesas e proletárias que, juntamente com seus filhos, foram do céu ao inferno pela Revolução Russa. De um lado, a conquista de um ousado aporte de direitos constitucionais que lhes prometia garantir os usos de uma nova moral sexual e a libertação das tarefas domésticas. De outro, a realidade dura de uma vida de misérias, abandono e exploração do trabalho. Ver a respeito Wendy Goldman. Mulher, Estado e Revolução. São Paulo: Boitempo, 2016.

[5] KwameNkrumah, ClassStruggle in Africa. Panaf Books, 2006. Frantz Fanon, Em defesa da revolução africana. Portugal, Sá da Costa Editora, 1969. Eric Williams. Capitalismo e escravidão. São Paulo, Cia das Letras, 2012

[6] José Carlos Mariátegui, Sete Ensaios de Interpretação da Realidade Peruana. São Paulo: Alfa Omega, 1975. Florestan Fernandes, Poder e contrapoder na América Latina, Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1981.

[7] Marxismo, socialismo e comunismo sempre identificados com a experiência soviética.

[8] Marx. “A assim chamada acumulação primitiva” em O capital. SP Nova Cultural, 1988.

[9] “Extractos de lectura” em Obras de Marx y Engels OME “Manuscritos de Paris y AnuariosFranco- Alemanes 1844”. Barcelona, Grijalbo, 1978, pgs 293 y 299.

[10] Ibidem, p. 124.

Fonte: https://contrahegemoniaweb.com.ar/2020/04/29/brasil-de-lula-a-bolsonaro-as-diferentes-faces-da- contrarrevolucao/

* Maria Orlanda Pinassi é professora da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara (Unesp) e da Escola Nacional Florestan Fernandes.




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